Quando, no Verão de 1857, se começou a discutir o traçado da Linha do
Minho, que ligaria o Porto à Galiza da via-férrea, o redactor principal do
jornal A Tesoura de Guimarães, José Inácio
de Abreu Vieira, deu conta das suas reservas à prioridade no investimento no
transporte por carril de ferro, num país onde faltavam as infraestruturas
rodoviárias. Escrevia na edição do dia 21 de Agosto:
Desejamos com ansiedade ver os rios
encanados e navegáveis, e as suas barras livres, e desembaraçadas para a franca
passagem desses armazéns, casas, palácios, e castelos flutuantes; e, com mágoa,
não vemos mais do que dilatadas correntes cheias de baixos, e cachopos, com
portos obstruídos! Qual será o motivo? — Todos respondem: não há meios para
obras tão dispendiosas.
Desejaríamos depois disto boas
estradas de ferro, prata, ou ouro, se as nossas possibilidades o permitissem, e
os nossos interesses reais o demandassem, preferindo-as sempre no terreno, em que
faltasse outro meio de cómoda e rápida comunicação.
No dia 25, ao divulgar a representação que a Câmara de Guimarães dirigiu
ao rei, em que alertava para a conveniência
de se derivar daquela linha um ramal, que tocando nesta mesma cidade siga
depois pelos concelhos de Braga, Esposende, e Barcelos, escrevia:
De resto, tanto a ela nos não
opomos, que até a aconselhamos. Se devemos pagar, e é “vantajoso”, um
caminho-de-ferro do Porto a Vigo, de melhor vontade pagaremos, e mais vantajoso
será ao comércio em geral, que as vilas e cidades do interior se comuniquem
rapidamente com as vilas, e cidades marítimas, e que por esta forma se nos dê
no espaço de anos, uma estrada tal, que ponha o Porto, Vila do Conde, Póvoa do
Varzim, Santo Tirso, Guimarães, Braga, Barcelos, Esposende, Viana, Caminha,
Valença, Monção e Melgaço tão próximas umas das outras, que sejam todas elas
consideradas uma, e a mesma cidade; fazendo-se desta sorte um caminho
verdadeiramente comercial para a província do, Minho, e não uma via de
comunicação entre Vigo e o Porto mais própria para tomar banhos do ar do mar,
do que para promover os menores interesses da província.
Perante os que lhe estranhavam a aparente contradição entre o que defendera no dia 21 e o que escrevera no dia
25, José Inácio respondeu no dia 28, com uma história que é uma parábola aos
custos que resultam do endividamento com investimentos que estão para lá
daquilo que é comportável. Aqui fica, até porque continua a servir como uma
luva ao Portugal de hoje:
Se é melindroso e difícil o falar e, ainda mais, o escrever na presença
de homens de instrução e de saber, não é menos melindroso o falar e escrever
perante aqueles que, tendo-se aplicado ao estudo com leviandade, não chegaram a
esclarecer o seu entendimento a ponto de distinguirem e poderem apartar o bom
do mau, ou mesmo de compreenderem o que se afirma, ou se nega, quando esta
afirmativa, ou negativa deixe de ser exprimida pura e simplesmente, pelos
advérbios: = Sim — ou — Não =.
É com estes que vamos hoje ocupar-nos, visto que acabamos de descer da
cadeira em que nos havíamos sentado para dar uma lição de instrução primária,
pedindo por isso desculpa aos nossos leitores assinantes, que não tendo coisa
alguma com as nossas obras de misericórdia, faltar-lhes-á a paciência com a repetição
de nossas lições — Os argumentos serão inúteis; e então, recorrendo ao exemplo,
conseguiremos o fim reunindo ao útil o agradável.
Eis uma história.
No tempo em que o lugar das Taipas tinha o nome de Dornelas e não, como
hoje tem, de Caldelas, existia ali um pequeno proprietário que, sendo viúvo, tinha
ficado usufrutuário dos bens de sua finada mulher, com poderes de cortar, contrair
dívidas, hipotecar etc. (menos de vender) e juntamente tutor de cinco filhos
menores, que tivera daquele matrimónio, o mais velho dos quais tinha 24 anos e
o mais novo 15, pertencendo os dois mais novos ao sexo feminino.
O nosso proprietário, conquanto fosse de sangue nobre, não tinha suficientes
meios de ostentar sua nobreza, mas antes lhe era necessário e a seus filhos
exercerem ocupações mecânicas para viverem livres de privações. Suas pequenas propriedades
eram situadas em distância umas das outras, todas um pouco desviadas da estrada
entre Guimarães e Braga. Sendo-lhe difícil cuidar na sua cultura em tais distâncias
deu, para habitar e granjear, debaixo de sua mediata autoridade, uma delas a
cada um de seus filhos varões, reservando para si e suas filhas a mais importante
delas, aonde ainda se via o escudo de suas armas, situada no dito lugar de
Dornelas.
Um dia, foi obrigado a ir a Guimarães e, em seguida, a Braga; e em ambas
estas grandes povoações viu coisas que o admiraram e entre estas algumas
carruagens, tendo o cuidado de indagar de quem eram e o uso que delas se fazia
e podia fazer.
Entregue a estas meditações, reuniu, sem saber ainda o que era governo
constitucional, todos os seus filhos, e lhes dirigiu estas palavras:
“Mal posso já visitar os nossos bens, tão separados uns dos outros, e
ainda menos cuidar dos negócios, que daqui em diante me chamam continuadamente
ora a Guimarães, ora a Braga, — vi nesta cidade e naquela antiquíssima vila o
modo como pessoas de sangue menos ilustre que o nosso vão de um lugar para o
outro com grande velocidade, sem se fatigarem, porque vão assentados, sem se
molharem com a chuva, porque vão abrigados, metidos em um cubículo colocado
sobre quatro rodas, puxado por dois, ou quatro, cavalos, ou machos, a que
chamam carruagem. É este um excelente modo de caminhar, que estou resolvido a
adoptar não só para minha comodidade, mas também para a vossa, porque escusais
assim recear fadigas de caminhos e as irregularidades do tempo.
“Demais tu, meu António, fazes chapéus de palha centeia; tu, meu Tomé,
fazes carapuças de lã; tu, meu Manuel, fazes colheres de pau, e as raparigas
tecem lenços de linho, que vendem aqui, como vós as vossas obras, por preço
baixo, quando no tempo de banhos os doentes vêm procurar a saúde metidos nessas
dornas de água enxofrada, podendo aliás ir as vossas manufacturas dentro dessa
carruagem aos mercados do Braga e Guimarães, aonde em todo o tempo terão pronta
e vantajosa venda. Como porém isto demanda despesas avultadas, não quero pôr em
execução o meu intento, sem vos ouvir”.
Os dois filhos mais velhos disseram — “Que muito desejavam as suas comodidades,
e mais ainda as de seu pai; porém que confrontando estas com as possibilidades
da casa, viam não era conveniente obtê-las por tal meio.
“Que uma carruagem custava muito dinheiro; que era depois mister comprar
cavalos, ou machos; tomar criados, pagar grandes soldadas a estes, e sustentar
estes e aqueles. Que para isto era indispensável tomar dinheiro a juros, que
nunca poderiam ser pagos com os lucros da exportação de suas manufacturas, pois
que se naquele lugar se vendiam por baixo preço, por mais baixo se venderiam
nas grandes povoações, aonde havia muito quem comprasse, mas ainda mais quem
trabalhasse, e com mais perfeição, que em Dornelas. Que, se seu pai não podia
andar a pé, se comprasse um jumento e, para se não molhar, uma capa de oleado.
Que o jumento era de pouco valor, e parco sustento, não demandando criados para
o seu tratamento. Que no mesmo jumento se podiam levar as manufacturas, e que,
se estas dessem lucros suficientes, se compraria um macho, dois ou três, e por
fim a carruagem, ou ficaria simplesmente o jumento para a comodidade de seu
pai, quando se não tirassem lucros proporcionados, e que desta sorte se
conservariam os poucos bens, que tinham.”
O filho mais novo, unido às meninas, foi de opinião contrária e, todos
juntos, apuparam os dois mais velhos, dizendo-lhes: que eles pertenciam a outro
sangue de plebeus, negando-se à ostentação da nobreza e às comodidades daquele
que era tido por seu pai, e a quem deviam a educação, e a vida. — A carruagem
não foi mais objecto da dúvida.
Vieram franceses, vieram ingleses, vieram ir espanhóis. Todos queriam
contratar a carruagem, que por fim foi encomendada àquele que por ela pediu
preço mais elevado. Contraíram-se empréstimos, hipotecaram-se os prédios, e...
ei-la aí a rodar para Brag, e Guimarães, para a igreja, para os vizinhos, e
para as propriedades, menos para aquelas em que habitavam os dois filhos mais
velhos. Vendo aqueles o desprezo com que eram tratados, elevaram uma representação a seu pai, na qual lhe expunham: que
deram o seu parecer, reprovando a carruagem, porque desejavam a seu pai uma comodidade
duradoura, livre de todo o risco, que anda sempre anexo aos grandes acontecimentos,
e a seus irmãos um interesse seguro à sua indústria, sem receio de perderem os
poucos bens que seus passados lhes transmitiram; uma vez, porém, que seus
conselhos foram desprezados e tudo foi entregue à eventualidade, seria
duplicada injustiça negarem-lhes também a eles representantes as comodidades
transitórias de que os outros se utilizavam com o sacrifício da futura
subsistência deles representantes, concluindo por pedir, que a carruagem
rodasse igualmente para suas casas.
O pai leu a representação perante os filhos mais novos que, batendo as
palpas, disseram. — Nada, nada. Isso é uma contradição.
A carruagem não oferecia vantagens e agora querem a carruagem! contradição, contradição. Eram dois
impostores. Não devem ser atendidos. — O pai, porém, fez o que entendeu, e
todos metidos na carruagem levaram as suas manufacturas a Braga e Guimarães.
Expostas nos mercados, nem sequer para elas olhavam. — Os chapéus de palha
centeia ficaram sem valor, à vista dos de palha de arroz e de junco de Itália;
as carapuças negras, à vista das alvas de algodão e daquelas de variadas cores
das fábricas estrangeiras; as colheres de pau, à vista das de prata e daquelas
de casquinha e metal príncipe vindas do estrangeiro; e os lenços de linho, à
vista dos de cassa finíssima e dos de seda espanhola e francesa. — Tornaram na
carruagem para Dornelas, a fim de serem ali vendidas no tempo dos banhos nas
dornas.
Mas o caso foi outro. Os criados de farda que, por mais peritos, eram franceses,
ingleses, alemães e russos, não iam vez alguma a Braga e Guimarães que não levassem
para Dornelas os bolsos e assentos da carruagem cheios de chapéus, carapuças,
colheres e lenços e, no tempo dos banhos, abriram uma loja destas e outras manufacturas
estrangeiras, que tiraram todo o valor às dos nobres imprudentes. — Os juros do
dinheiro deixaram de ser pagos; venderam-se os machos; despediram-se os criados,
e a carruagem ficou às moscas. — Vieram as penhoras; e, quando se quis comprar
o jumento e a capa de encerado, já não havia com quê. — O pai morreu de paixão
e os filhos foram para as cortes da Europa aprender a fazer chapéus, carapuças,
colheres, e tecer lenços de seda.
Acabou-se a história. Agora, tirando do conto a moralidade, digam aqueles
a quem nos dirigimos: se o segundo artigo do n.° 99 da Tesoura de Guimarães está em contradição, com o que havíamos dito
sobre caminhos-de-ferro: e se estes são convenientes para na actualidade, levar
as nossas mercadorias aos países estrangeiros?
José Inácio de Abreu Vieira.
A Tesoura de Guimarães, 28 de Agosto de 1857
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