A Senhora Aninhas, Madrinha dos Estudantes (foto da AAELG-Velhos Nicolinos) |
A propósito do Internato Municipal que funcionou, juntamente com o Liceu,
no extinto Convento de Santa Clara de Guimarães, recorda-se aqui, pela mão do
Coronel António de Quadro Flores, uma figura marcante da vida estudantil e
Guimarães na primeira metade do século XX. Era natural de Quinchães (Fafe) e chamava-se
Ana Joaquina de Magalhães Aguiar (1860-1948), mas era conhecida como a Senhora Aninhas. Casada com um empregado
do Liceu, tinha uma pequena loja na rua de Santa Maria onde vendia farinha,
produtos da horta e mercearia. Era ali que os estudantes acorriam nos
intervalos das aulas a comprar cigarros. Alguns, faziam ali as refeições.
Muitos daqueles jovens eram de longe e a Senhora
Aninhas dava-lhes amparo de mãe. Deram-lhe o título de Madrinha dos
Estudantes.
O Coronel António de Quadros Flores recordou-a num texto que dedicou ao
seu primo, o jornalista Joaquim Novais Teixeira. Vale a pena recordar a sua
memória, a quem a conheceu e a quem, como eu, que sou do tempo do Sr. Fernandes,
a conhece de outiva.
Ao primo Joaquim Teixeira — VIMARANENSE
Não retenho na memória imagens nítidas da senhora Aninhas pelas quais
possa dar um esboço de como ela ficou no coração de todos os estudantes que
passaram pelo Liceu de Guimarães.
Tenho a vaga recordação, vai isto lá para os cinquenta e oito anos, da
época em que a senhora Aninhas se estabeleceu na rua de Santa Maria, quase na
esquina da viela, que se chamou das Doroteias, com a sua tenda de compra e
venda de farinha de milho, a que ajuntou depois um pequeno negócio de cigarros
— Tabacos habilitado — como se dizia nas chapas das casas que vendiam os
tabacos.
Este habilitado é que ainda
agora me dá que pensar, por supor naquele tempo todos os cursos necessários,
mesmo o grau de doutor, para vender os cigarrinhos Fortes e Almirantes, estes
últimos de pitoresca e saudosa memória.
O que me ficou desse tempo — subia-se um degrau para a única porta da
tenda e à entrada, à direita, uma masseira e pendurado na porta um pequeno
armário envidraçado ostentando os maços de cigarros Santa Justa, Incríveis,
Turcos, Pachás (não eram especialidade de tabaco turco, mas representavam um
turco barbado e de turbante), os Antoninos, os Gamas de capa de papel castanho,
as cigarrilhas e outras especialidades.
Lá para dentro, depois de um pequeno espaço, outra estante maior tendo na
base uns cacifros para as várias farinhas — a de centeio, a misturada, a de
milho e um bocado da de trigo.
À esquerda, e no recanto, uma enorme balança, de pratos de madeira,
suspensa do tecto por cordas, e onde se pesavam as arrobas do milhão e farinha
em sacos e taleigos, e onde nós às vezes experimentávamos a nossa pessoa, pondo
no outro prato os enormes pesos de 10 e 20 quilos, que tinham uma pega no meio
ou uma argola.
Mais para dentro era o armazém da sacaria cheia de milho e farinha, e
para as traseiras entrevia-se um pequeno quintal onde nunca fui.
No primeiro ano que frequentei o Liceu, em 1898, conheci primeiramente o
senhor António André e depois a sua Mulher, que era a senhora Aninhas.
Suponho que foi nesse ano que se estabeleceu na casa onde passou a viver
e veio depois a falecer.
A ele ainda o recordo de capote de baetão, com dois cabeções, de chancas
no Inverno, junto da sineta à entrada do claustro, do lado esquerdo, a
puxar-lhe pelo arame para anunciar a entrada das várias aulas à medida que iam
chegando os «se cónegos», nossos professores — tim, tim, tim — tim, tim, tim...
A senhora Aninhas estava à frente da tenda, e era com ela que a pequenada
dos primeiros anos se entendia para se iniciar na primeira manifestação de
homem grande — a de fumar.
A senhora Aninhas bem nos prevenia dos malefícios do cigarro» e principalmente
do perigo de a Família o saber, mas a nossa teima (ó senhora Aninhas, só dois
cigarrinhos para experimentar) lá a levava a fornecê-los (veja lá o menino que
é só por esta vez).
Ainda me recordo de ver o cónego Ribeiro, alto e desembaraçado, moreno
como um árabe, comprar todos os dias um maço de «Antoninos» que custavam seis
vinténs.
E da senhora Aninhas desse tempo, que nos vendia os «trigos» quentinhos e
estaladiços, só vagamente conservo uma imagem; pequenina, coradinha, sempre
risonha, acolhedora e maternal, cuja vozinha meiga nos protegia e aconselhava,
e se interessava pelas nossas lições, alegrias e pequenas tristezas.
No segundo ano, e até ao quinto, fui para o colégio de Santa Luzia, dos
jesuítas, e só raramente entrava na tenda da senhora Aninhas, num ou noutro
intervalo, e de fugida, é que lá ia comprar um trigo.
Depois saí de Guimarães e só de longe a longe é que passava pela tenda a
comprar os cigarros que a senhora Aninhas me fornecia já sem conselhos, mas
indagava da minha vida escolar.
Cresci e subi na vida até aspirante do 20 e„ arrastando a espada
inseparável de qualquer oficial, passava na senhora Aninhas que, tratando-me já
por — senhor aspirante — toda luzia de satisfação a indagar da minha vida com
carinho e interesse maternal, e ao sair ainda a ouvia dizer aos pequenos do
Liceu que por lá se demoravam — este menino...— esquecendo-se de que já era um
matulão, namorava, arrastava a espada a tilintar por essas calçadas, e às
noites arranchava em estrondosas ceias de tripas enfarinhadas e ovos
estrelados, apresentados pelo serviçal e discreto Macedo, da Linha.
Mas para ela ainda era o menino do Liceu, e todos os que por lá passaram,
como o Joaquim Teixeira, por quem ela compungida- mente me perguntava: — E o
Primo Quinzinho, um bocadinho traquina, mas tão bom menino? — quando se meteu
em aventuras.
Os anos passaram, andei pela África e a senhora Aninhas, quando minha
santa Mãe ali passava, ou da casa de minha Avó, ou da Missa da Oliveira, não se
esquecia de perguntar pelo senhor capitão que lá andava por essas terras
perdidas na vastidão do Mundo, e era sempre: Então, senhora D. Aninhas (ambas
estas Santas tiveram o mesmo nome), que notícias me dá do seu menino, do senhor
capitão?
Continuou a vida e andei arredio da nossa terra e só de longe a longe via
a senhora Aninhas quando passava pela sua tenda, sempre cheia de estudantes, e
ela, já há muito falecido o senhor André, lá continuava a fornecer os trigos e
os cigarros tal como dantes, nos nossos tempos de rapazes do Liceu.
Mais velhinha, encarquilhada, os cabelos todos brancos, como que
polvilhados da farinha da sua tenda, as faces rosadas, os olhos sempre
interessados e risonhos quando via um velho conhecido, que era o mesmo que um
velho amigo, ainda tinha no regaço a cestinha da costura e as agulhas de meia,
que foi sempre a sua ocupação habitual.
Nestes últimos tempos já me tratava por — senhor coronel — e, ao lembrar
os tempos passados, não deixava de regressar ao cativante e carinhoso
tratamento — Ah! quando o menino andava no Liceu...
A última vez que a vi foi nas festas do cinquentenário das Nicolinas,
quando lhes destinaram o lugar de honra na récita do teatro Jordão.
Esta figura vimaranense, aqui vagamente delineada, tem a sua consagração
na travessa junta da antiga casa — a travessa da senhora Aninhas — que lhe
destinou a Câmara de Guimarães, composta de seus antigos tutelados.
E de tantos que passaram pelo Liceu de Guimarães, ou seja pela tenda da
senhora Aninhas, não haverá um pintor, ou escultor que possa reproduzir essa criatura
que tutelou a rapaziada vimaranense e tanta mais deste País?
Coronel António
de Quadros Flores, Guimarães na última
quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, cap. XXXIV, págs.
169-171
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