Camilo Castelo Branco |
– Diga-mo agora,
minha mãe, que eu receio não poder ouvi-la na sepultura. Os ouvidos dos mortos
estão cheios de vermes... A podridão é surda. Para onde iremos? Eu não quero
morrer, mãe! Tenho dois filhos: tenho minha mulher, que nos está ouvindo, posto
que esteja morta, e tenho minha mãe que me dá exemplo de coragem. Hei-de
sobreviver ao degredo. Diga-me para onde iremos...
– Para a casa onde
nasceu teu avô, se a casa ainda existir.
– Para Guimarães?
Sei que meu pai tinha comprado esse pardieiro aos oficiais de meu bisavô
cuteleiro...
– Comprou...
Vaticinava-me o coração que eu iria acabar na casinha da rua de Infesta onde
começara a sentir a felicidade. Pedi a teu pai que a comprasse aos mesmos a
quem a déramos, quando meu avô morreu... Bem sei que me hão-de traspassar
cruéis angústias quando entrar naquela casa... Não importa... Se me queres
acompanhar, Jorge, vem comigo; depois, irás para Lisboa, melhorar a tua vida,
que ainda pode ter algum contentamento, e vai ver-me uma vez por outra.
– Não nos
separaremos – volveu o filho. – Desde que saí do sepulcro da Inquisição ainda
não vi o sol da alegria que dá o sentimento íntimo da vida. Que me faz Lisboa?
que me importam os triunfos de advogado, se já os não posso repetir? Não
tornarei a ser o que fui... E que fiz eu?... A desgraça apagou-me a memória. De
todos os meus estudos e triunfos apenas colhi uni amigo, um homem de quem o
povo pedia a cabeça, quando eu o arrancava às mãos do algoz. Salvei-o, e...
desprezava-o!... mas Pedro Supico de Morais, dando-me a liberdade e o direito
ao trabalho, faria de mim o antigo homem, se eu pudesse recompor o cérebro que
me fizeram pedaços e mo arrancaram nas lágrimas. Tenho obrigação de viver,
porque sou filho, esposo e pai. Privaram-me dos meus filhos; levaram-mos como
reféns da minha fé; serão jesuítas, serão padres, se eu quiser alguma vez, na
minha vida, estreitá-los ao peito e dizer-lhes que sejam hipócritas para que
seu pai não volte ao cárcere. A condição para que eu viva é que eles sejam
imolados... a Deus! Seja assim... Vamos, minha mãe, vamos para o pobre casebre
donde saiu seu pai a implantar na terra uma árvore de vergônteas malditas
regadas com o seu sangue... Esperemos lá os meus filhos; não nos resta esperar
outra alegria antes do último sono do sepulcro.
Nos últimos meses de
1707, Jorge Mendes e sua família residiam em Guimarães, na casa onde nascera
Domingos Leite Pereira, setenta e oito anos antes. Ângela, se antevisse a
cerrada tristeza que a esperava naquele recinto onde volteavam as sombras do
avô e do marido, teria o egoísmo de se arredar de um suplício de nenhum modo
compensado. No engano de Ângela há exemplos de muitos iludidos. Figura-se-nos
que no sítio onde nos bafejou a felicidade ainda poderemos aquecer ao calor das
recordações a alma retransida das glaciais desgraças. Pinta-se-nos na fantasia
alucinada por saudades que as pessoas mortas, que lá nos floriram a vida,
deixaram. toques de suave melancolia impressos na tela desluzida da nossa
mocidade. Prelibamos o agro das lágrimas que vamos chorar; mas cuidamos que,
depois das primeiras angústias, se nos há-de a alma ir serenando em doces
quebrantos daquela melancolia cismadora que é o remanso, onde a vaga tormentosa
quebra e adormece. Funesta miragem! Os repulsos das alegrias do presente que aí
vão buscá-las onde lhes ficou o túmulo delas, encontram a desolação, as ruínas
das coisas reais sobre as ruínas das imagens redivivas na saudade. Os mortos
amados erguem-se ante nós; mas hirtos, taciturnos, com as pálpebras roxas da
tabidez dos vermes, e outra vez se reclinam no seio da sua podridão. Tudo
aniquilado e perdido! Se aí há desafogo algum, é para aqueles que se
compenetraram da bem-aventurança da morte – o grande abismo de tudo, a eterna
serenidade do nada.
O diadema de Santo
Inácio de Loiola parecia perpetuar-se na ciência da sua progenitura espiritual.
Os filhos de Jorge Mendes, António e Francisco Xavier, fadara-os o vaticínio
dos mestres para os elevados postos da Companhia. Em 1709 eram eles os mais
distintos alunos do colégio em Coimbra; mas o braço poderoso de Pedro Supico de
Morais ousou chegar aí e arrancar do tesouro da próvida Companhia aqueles dois
preconizados sucessores da dinastia do talento.
Jorge Mendes
confidenciara-lhe a mágoa de se ver apartado dos filhos, sendo essa uma cruel
pena a que o Santo Ofício expressamente o não sentenciara. Queixava-se de que
os jesuítas desatassem os vínculos da família, degenerando em quase indiferença
o amor que seus filhos tiveram aos pais, até à hora em que a Companhia os
avassalara. Carpia-se por se ver obrigado a dissimular e transigir com essa
ímpia tirania, receoso de recair nas masmorras do Santo Ofício e enredar os
filhos na sua irremediável perdição se o acusassem de reincidência. Mostrava
ter informações de que os seus inimigos se confederavam para reagir à
influência do infante D. Francisco, suspeitando-o insidiosamente à Inquisição,
que o trazia espiado pelos seus familiares em Guimarães, que eram os mais
fidalgos e os mais devassos moradores da terra, Finalmente, pedia ao valido do
infante prior do Crato que por algum modo fizesse saber a seus filhos que se
não esquecessem dele, nem aceitassem como divino o sevo preceito que impõe aos
filhos a barbaria de desprezarem seus pais por amor de Deus.
Pedro Supico não se
considerava ainda bastante desobrigado com o defensor que o salvou do patíbulo
ou do degredo perpétuo. Por mediação directa de D. Francisco de Bragança, os
filhos do bacharel Mendes Nobre foram transferidos do colégio das Artes a fim
de serem empregados no serviço do infante. Impugnou a Companhia alegando o
primeiro voto e a vocação dos moços devotados liberrimamente ao instituto. Por
secreta via, receberam os noviços conselhos do pai e do subsecretário de D.
Francisco. Os rapazes, desoprimidos do temor de exporem o pai às insídias de
inimigos, despiram o hábito com desafogo, e respiraram a haustos o primeiro ar
de liberdade na juventude. Paulo tinha vinte anos, e dezoito Francisco Xavier.
O primeiro estudou jurisprudência; o segundo continuou teologia. Nenhum estorvo
lhes dificultou a carreira. Os padres da Companhia doeram-se da perda, mas não
se vingaram dos trânsfugas, conforme os ardis da Monita secreta, delatados
ao ódio público pelos atrabiliários amanuenses do marquês de Pombal, meio
século depois.
Os filhos de Jorge
Mendes alegraram a precoce velhice de seu pai, e assistiram aos paroxismos de
sua avó. Ângela finou-se em 1712, à volta dos sessenta e oito anos. Dado que
cortadas de dores, as fibras desta raça de gente resistiam com rara tenacidade
de vida. Dir-se-ia que as molas orgânicas da matéria se desgastam menos quando
sobre a alma é que as dores actuam.
(Camilo Castelo
Branco, A Caveira da Mártir – Introdução, 1876)
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