Camilo Castelo Branco |
Ao cabo de duas
semanas, saíram dos domínios da balada. Uma noite, partiram de Guimarães,
caminho do Porto, dois cavalos do Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Um dos
cavalos era arreado com selim de senhora. Por volta da meia-noite, Adolfo e
Honorata, num passo miúdo, com uma ansiedade, misto de exultação e de susto,
chegaram à Ponte de Brito. Ele ajudou-a a sentar-se na sela; cavalgou, disse
aos dois arneiros o seu destino, e partiram a trote largo.
(…)
O Zeferino das
Lamelas, às primeiras comoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães,
preparou-se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciúmes como
o sineiro de Notre Dame, agarrou-se à corda do sino, reuniu no adro os
jornaleiros e vadios de três freguesias, e pegou a dar morras aos
Cabrais com aplauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro,
confundindo este expediente estatístico com canastro: – que os Cabrais e
os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal à
Inglaterra; que esses réis estavam nos cartórios das administrações e em casa
dos regedores; que era preciso queimar as papeletas e matar os
cabralistas.
(…)
Depois do convénio
de Gramido, Zeferino recolhera às Lamelas com alguns dos seus primitivos
legionários. Ele tinha passado transes amargos. Juntara-se ao aventureiro
Reinaldo MacDonnell, em Guimarães, quando o escocês descia do Marco de
Canaveses para Braga; esteve nas barricadas da Cruz da Pedra quando o barão do
Casal espatifou a resistência daqueles desgraçados iludidos pelo caudilho
estrangeiro; foi dos primeiros a fugir por Carvalho de Este, a compreender a
inutilidade da defesa, e por montes e vales deu consigo em Porto de Ave, e
daqui foi para Guimarães, onde se aquartelaram o MacDonell com o seu
estado-maior. Logo que chegou foi procurar o tenente-coronel Cerveira Lobo, que
fazia parte do cortejo do general. Mandaram-no ao palacete do visconde da
Azenha, onde o escocês se tinha aquartelado com o seu estado maior.
O Cerveira Lobo
estava a beberricar conhaque velho copiosamente sobre uma ceia farta, comida
sem sobressaltos. À mesa, onde faiscavam os cristais dos licores, avultavam,
cintilando os metais das suas fardas, o quartel-mestre-general Vitorino
Tavares, de Fagilde, José Maria de Abreu, ajudante-de-ordens, o morgado de Pé
de Moura, o Cerveira Lobo e o Sebastião de Castro, do Covo, comandante do
batalhão de voluntários realistas de Oliveira de Azeméis, que arredondava 42
praças, e seu irmão António Carlos de Castro, ajudante-de-ordens do general –
dois homens gentilmente valorosos; – o coronel Abreu Freire, morgado de Avanca,
e o Bandeira de Estarreja que é hoje padre.
A noite era de 27 de
Dezembro de 1846, muito fria. Bebia-se forte. A garrafeira da casa do Arco era
um calorífico. O MacDonell, muito rubro, naquela bebedeira crónica que lhe
assistiu na vida e na morte, esmoía a ceia passeando num vasto salão, de braço
dado com uma formosa senhora da casa, D. Emília Correia Leite de Almada.
Dir-se-ia que o bravo septuagenário tinha vencido uma batalha decisiva, e
procurava matizar com flores de Cupido os seus louros de Mavorte. E o Cerveira
Lobo bebia e relatava proezas dos seus saudosos dragões de Chaves com gestos
bélicos e as pernas desviadas como se apertasse nas coxas a sela de um cavalo
empinado no fragor da peleja. Nisto entrou um camarada, às 11 da noite, a
chamar apressadamente o quartel-mestre-general, que o procurava com muita
urgência um capitão de atiradores do batalhão do Pópulo. O Vitorino de Fagilde
encontrou na sala de espera o capitão Pinho Leal*, um robusto e jovialíssimo
rapaz, de trinta anos, com uma fé política, antípoda da sua forte inteligência
– uma espécie de poeta medieval com um grande amor romântico às catedrais e às
instituições obsoletas e extintas. Ele tinha muitos destes camaradas
visionários e respeitáveis na sua falange da Madre-Silva...
– Que há? –
perguntou o quartel-mestre-general.
– Há que estamos
cercados pelos Cabrais. Os nossos piquetes de Santa Luzia e do Castelo já foram
atacados, e ouve-se fogo de fuzil em outros pontos. Veja lá o que quer que eu
faça.
O Vitorino ficou passado
de terror, e levou o capitão à sala em que o MacDonell passeava pelo braço de
D. Emília Azenha, e o visconde, o hospedeiro fidalgo palestrava com numerosos
hóspedes, cónegos, abades, capitães-mores, antigos magistrados. Pinho Leal
repetiu ao escocês o que dissera ao seu quartel-mestre. «O alma do Diabo –
escreve o Sr. Pinho Leal – ficou com a mesma cara imperturbável, e disse-me: Isso
não vale nada. Tenho tudo prevenido. Mande recolher a gente a quartéis.»
Mas a dama assustada desprendeu-se do braço do general, e foi preparar os baús
para a fuga; e os do estado-maior compeliram o general a fugir também. Era uma
hora da noite quando o exército realista abandonou Guimarães e entrou na
estrada de Amarante.
Pinho Leal inventara
o ataque dos cabralistas para salvar-se a si e aos outros da carniçaria
inevitável; porque, ao romper a manhã do dia seguinte, entraram em Guimarães
seiscentos soldados do Casal ainda embriagados da sangueira de Braga.
Reproduzem-se textualmente no seu estilo militarmente pitoresco os veracíssimos
esclarecimentos de Pinho Leal: ...A besta do escocês continuava na sua
pânria sem se importar da guerra para nada, e o mesmo faziam os da sua "corte".
Eu, vendo que de um momento para outro, podíamos ser surpreendidos e
trucidadas pelos Cabrais, aproveitando a circunstância de estar «superior
do dia» e tendo na casa da câmara um «suporte» de cem homens,
comandados pelo alferes José Maria (o morgado do Triste) dei-lhe a ele somente
parte do que ia pôr em execução. Escolhi da gente do «suporte» um
sargento e quatro soldados da mesma companhia, de todo o segredo e confiança.
Saí com eles por um beco e fui com eles pela frente dar uma descarga no nosso
piquete de Santa Luzia, e outra no piquete do Castelo. Ao mesmo tempo, não sei
quem é que estava num monte ao norte de Guimarães que deu uns poucos de tiros
que muito ajudaram o meu plano. O «Triste» em vista da nossa prévia
combinação, mandou tocar a reunir e formou o suporte debaixo dos Arcos da
Câmara. Eu e os meus cinco homens viemos sorrateiramente metermo-nos na vila.
Fui «passar revista ao suporte» a tempo em que já na Praça da Oliveira
estava muita gente armada. **
E dali, Pinho Leal
foi à casa do Arco, a fim de salvar aqueles homens que se ensopavam em bebidas
de guerra numa pacificação de idiotas, e retardar alguns dias a benemérita
morte do general escocês assalariado por Guizot com credenciais de Costa
Cabral.
* Era o meu actual e prezado amigo Augusto Soares de Azevedo
Barbosa de Pinho Leal, autor do Portugal Antigo e Moderno.
** Carta de 10 de
Junho de 1877.
(Camilo Castelo branco, A Brasileira de Prazins, 1882)
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