Guimarães na obra de Camilo Castelo Branco (10)

Camilo Castelo Branco

Ao cabo de duas semanas, saíram dos domínios da balada. Uma noite, partiram de Guimarães, caminho do Porto, dois cavalos do Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Um dos cavalos era arreado com selim de senhora. Por volta da meia-noite, Adolfo e Honorata, num passo miúdo, com uma ansiedade, misto de exultação e de susto, chegaram à Ponte de Brito. Ele ajudou-a a sentar-se na sela; cavalgou, disse aos dois arneiros o seu destino, e partiram a trote largo.
(…)
O Zeferino das Lamelas, às primeiras comoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciúmes como o sineiro de Notre Dame, agarrou-se à corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de três freguesias, e pegou a dar morras aos Cabrais com aplauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatístico com canastro: – que os Cabrais e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal à Inglaterra; que esses réis estavam nos cartórios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar as papeletas e matar os cabralistas.
(…)
Depois do convénio de Gramido, Zeferino recolhera às Lamelas com alguns dos seus primitivos legionários. Ele tinha passado transes amargos. Juntara-se ao aventureiro Reinaldo MacDonnell, em Guimarães, quando o escocês descia do Marco de Canaveses para Braga; esteve nas barricadas da Cruz da Pedra quando o barão do Casal espatifou a resistência daqueles desgraçados iludidos pelo caudilho estrangeiro; foi dos primeiros a fugir por Carvalho de Este, a compreender a inutilidade da defesa, e por montes e vales deu consigo em Porto de Ave, e daqui foi para Guimarães, onde se aquartelaram o MacDonell com o seu estado-maior. Logo que chegou foi procurar o tenente-coronel Cerveira Lobo, que fazia parte do cortejo do general. Mandaram-no ao palacete do visconde da Azenha, onde o escocês se tinha aquartelado com o seu estado maior.
O Cerveira Lobo estava a beberricar conhaque velho copiosamente sobre uma ceia farta, comida sem sobressaltos. À mesa, onde faiscavam os cristais dos licores, avultavam, cintilando os metais das suas fardas, o quartel-mestre-general Vitorino Tavares, de Fagilde, José Maria de Abreu, ajudante-de-ordens, o morgado de Pé de Moura, o Cerveira Lobo e o Sebastião de Castro, do Covo, comandante do batalhão de voluntários realistas de Oliveira de Azeméis, que arredondava 42 praças, e seu irmão António Carlos de Castro, ajudante-de-ordens do general – dois homens gentilmente valorosos; – o coronel Abreu Freire, morgado de Avanca, e o Bandeira de Estarreja que é hoje padre.
A noite era de 27 de Dezembro de 1846, muito fria. Bebia-se forte. A garrafeira da casa do Arco era um calorífico. O MacDonell, muito rubro, naquela bebedeira crónica que lhe assistiu na vida e na morte, esmoía a ceia passeando num vasto salão, de braço dado com uma formosa senhora da casa, D. Emília Correia Leite de Almada. Dir-se-ia que o bravo septuagenário tinha vencido uma batalha decisiva, e procurava matizar com flores de Cupido os seus louros de Mavorte. E o Cerveira Lobo bebia e relatava proezas dos seus saudosos dragões de Chaves com gestos bélicos e as pernas desviadas como se apertasse nas coxas a sela de um cavalo empinado no fragor da peleja. Nisto entrou um camarada, às 11 da noite, a chamar apressadamente o quartel-mestre-general, que o procurava com muita urgência um capitão de atiradores do batalhão do Pópulo. O Vitorino de Fagilde encontrou na sala de espera o capitão Pinho Leal*, um robusto e jovialíssimo rapaz, de trinta anos, com uma fé política, antípoda da sua forte inteligência – uma espécie de poeta medieval com um grande amor romântico às catedrais e às instituições obsoletas e extintas. Ele tinha muitos destes camaradas visionários e respeitáveis na sua falange da Madre-Silva...
– Que há? – perguntou o quartel-mestre-general.
– Há que estamos cercados pelos Cabrais. Os nossos piquetes de Santa Luzia e do Castelo já foram atacados, e ouve-se fogo de fuzil em outros pontos. Veja lá o que quer que eu faça.
O Vitorino ficou passado de terror, e levou o capitão à sala em que o MacDonell passeava pelo braço de D. Emília Azenha, e o visconde, o hospedeiro fidalgo palestrava com numerosos hóspedes, cónegos, abades, capitães-mores, antigos magistrados. Pinho Leal repetiu ao escocês o que dissera ao seu quartel-mestre. «O alma do Diabo – escreve o Sr. Pinho Leal – ficou com a mesma cara imperturbável, e disse-me: Isso não vale nada. Tenho tudo prevenido. Mande recolher a gente a quartéis.» Mas a dama assustada desprendeu-se do braço do general, e foi preparar os baús para a fuga; e os do estado-maior compeliram o general a fugir também. Era uma hora da noite quando o exército realista abandonou Guimarães e entrou na estrada de Amarante.
Pinho Leal inventara o ataque dos cabralistas para salvar-se a si e aos outros da carniçaria inevitável; porque, ao romper a manhã do dia seguinte, entraram em Guimarães seiscentos soldados do Casal ainda embriagados da sangueira de Braga. Reproduzem-se textualmente no seu estilo militarmente pitoresco os veracíssimos esclarecimentos de Pinho Leal: ...A besta do escocês continuava na sua pânria sem se importar da guerra para nada, e o mesmo faziam os da sua "corte". Eu, vendo que de um momento para outro, podíamos ser surpreendidos e trucidadas pelos Cabrais, aproveitando a circunstância de estar «superior do dia» e tendo na casa da câmara um «suporte» de cem homens, comandados pelo alferes José Maria (o morgado do Triste) dei-lhe a ele somente parte do que ia pôr em execução. Escolhi da gente do «suporte» um sargento e quatro soldados da mesma companhia, de todo o segredo e confiança. Saí com eles por um beco e fui com eles pela frente dar uma descarga no nosso piquete de Santa Luzia, e outra no piquete do Castelo. Ao mesmo tempo, não sei quem é que estava num monte ao norte de Guimarães que deu uns poucos de tiros que muito ajudaram o meu plano. O «Triste» em vista da nossa prévia combinação, mandou tocar a reunir e formou o suporte debaixo dos Arcos da Câmara. Eu e os meus cinco homens viemos sorrateiramente metermo-nos na vila. Fui «passar revista ao suporte» a tempo em que já na Praça da Oliveira estava muita gente armada. **
E dali, Pinho Leal foi à casa do Arco, a fim de salvar aqueles homens que se ensopavam em bebidas de guerra numa pacificação de idiotas, e retardar alguns dias a benemérita morte do general escocês assalariado por Guizot com credenciais de Costa Cabral.
* Era o meu actual e prezado amigo Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal, autor do Portugal Antigo e Moderno.

** Carta de 10 de Junho de 1877.
(Camilo Castelo branco, A Brasileira de Prazins, 1882)

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