Camilo Castelo Branco |
GIL VICENTE
Descobri o sítio
onde ele nasceu em Guimarães. Já o disse ao País em uma novela, e ninguém fez
caso disso. El-rei não me deu o hábito de Santiago, que eu tinha de olho.
Também eu desisti, por vingança, de fazer saber a el-rei e ao País onde nasceu
Manuel Mendes Enxúndia.
Dos peitos nobres
a vingança é esta.
Era filho de Martim
Vicente, ourives, e neto de Fernão Vicente, sapateiro, morador no Casal da
Laje, freguesia de Santo Estêvão de Urgeses, nos arrabaldes da antiga
Guimarães. Gil Vicente é o criador da grande e gordurosa chalaça lusitana em
diálogo e o revelador da linguagem usada na corte de D. Manuel e nas alcovas
das rainhas quando elas davam à luz os seus infantes ou festejavam o natalício
do Menino Jesus. Como só temos impresso o vocabulário desse século nas obras de
Gil Vicente e nos falta a crónica dos costumes da vida íntima, não sabemos se o
comportamento das famílias era cândido como os seus dizeres. As rainhas riam
muito quando assistiam ao parto duma personagem em cena, ajudado pelas
pitorescas reflexões da parteira, que, em presença de Suas Altezas, fazia o
mesmo que fez o filósofo Alcidamas, com o mais cínico desvergonhamento, no
banquete do grego Luciano. Com tal baptismo, raiou a arte cénica em Portugal, e
não há confrontá-la com os mistérios franceses e italianos, com os milagres
em Inglaterra e com as comédias de Nabarro, impressas em Nápoles em 1517.
Gil Vicente saiu da
Idade Média com toda a sua originalidade estreme e crua.
(Camilo Castelo
Branco, Cancioneiro Alegre, 1879)
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