Efeméride do dia: O sangrador

Barbeiro-sangrador

16 de Julho de 1655
Carta, passada em Lisboa, de ofício de sangrador, de Jerónimo Dias, morador na freguesia de Mosteiro de Oliveira, o qual foi examinado pelo licenciado António de Morais, médico, morador na vila de Guimarães, com Lourenço Ferreira e João Lopes sangradores aprovados.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 46)

Clysterium donare,
Postea seignare,
Ensuitta purgare.
Molière, Le Malade Imaginaire

Durante longos séculos a prática médica assentou em três terapias fundamentais, glosadas por Molière, no seu latim macarrónico: as sangrias, as purgas e os clísteres. Todas as doenças poderiam ser tratadas com aquelas intervenções, que decorre ver com a visão hipocrática do funcionamento do corpo humano, que perdurou  ao longo de muitos séculos, até ao advento da medicina moderna. É a teoria dos quatro humores, assim descrita num livro atribuído a Políbio, Da Natureza Antiga:
O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra; que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação uma às outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturada com as outras.
Como o equilíbrio ou o desequilíbrio entre os humores nas diferentes partes do corpo humano ditavam a saúde ou a doença, a medicina trabalhava no sentido de manter a sua harmonia, através de sangrias, purgas e clísteres. A sangria poderia ser feita de dois modos.
O mais vulgarizado é a flebotomia que consiste na operação em que se procede a uma incisão numa veia, meticulosamente escolhida conforme a maleita que se pretende tratar, de modo a que seja derramado algum sangue. Se nele forem identificados humores pútridos, dir-se-á que organismo reage aos seus males expulsando o que os origina; se forem percebidos como bons, então será dito estar-se perante um organismo bem constituído, que alberga no seu interior humores ainda melhores do que os que expulsa. Uma outra forma de sangrar consiste na aplicação de vixas sangradeiras (sanguessugas) sobre a parte do corpo que deverá ser sangrada. O mesmo efeito podia ser obtido através da aplicação de ventosas.
A sangria não era entendida apenas como uma terapêutica eficaz. Os seus efeitos profiláticos doença eram também universalmente exaltados. Daí que os médicos do passado prescrevessem a todas as pessoas algumas sangrias anuais, que deveriam ser efectuadas seguindo um calendário astrológico que tinha em conta os dias benéficos e os dias críticos indicados pelo fluxo dos astros nos céus.
Atendendo-se a que, no passado, a sangria era encarada como uma espécie de panaceia universal, sendo empregue utilizada tanto na medicina preventiva como na curativa, percebe-se a importância do ofício de sangrador, exercido, geralmente, em acumulação de funções com as artes de barbeiro, que era uma espécie de homem-dos-sete-instrumentos: além de tratar de cabelos, barbas e bigodes, afiava ferramentas e espadas, extraía dentes, tirava calos, lançava sanguessugas, aplicava ventosas, sangrava e sarrafava (sarrafar ou sarjar era a operação em que se abriam pequenas incisões até à carne viva, com fins terapêuticos).
Para exercerem a actividade de sangrador, os barbeiros necessitavam de se munir de uma carta de examinação passada pelo Físico de Sua Majestade e seu Cirurgião-Mor, que era entregue aos candidatos após um exame por ele feito com o auxílio de dois barbeiros examinados. Nessa carta, o barbeiro-sangrador fica autorizado a sangrar, sarrafar, lançar ventosas e tirar dentes em todo o reino e senhorios de Portugal. Todavia, não poderia exercer a actividade de sangrador em pessoa alguma sem licença de médico ou cirurgião aprovado, com pena de dois mil réis, a metade para o cirurgião-mór e a outra metade para quem o acusar*. Com a concessão ao denunciante de metade da multa estipulada, prática corrente naqueles tempos, as actividades dos sangradores estavam, à partida, devidamente controladas pelo cirurgião-mor, que estava na Corte, junto do rei.

Para ajudar a perceber a dimensão que as sangrias tinham no passado, damos um exemplo: no ano de 1571, no convento de santa Clara de Guimarães, gastaram-se 240 réis com a sangria de três servas e 800 réis com a de cinco freiras. E, sabendo-se que cinquenta anos antes, cada sangria custava 10 réis, percebe-se que, mesmo tendo em conta as naturais subidas de custos num período de 50 anos, as verbas gastas pelas clarissas deveriam dar, pelo menos, para uma sangria mensal. Seria demasiado? Nem por isso, uma vez que, à época, se achava que no sistema circulatório humano comportava mais de vinte litros de sangue…

* A. L. de Carvalho,Mesteres de Guimarães, vol. V, pp. 175-176

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