Vítimas de peste bubónica. |
12 de Julho de 1599
Frei João de S. José e os mais frades de
S. Francisco pedem e alcançam do Arcebispo licença para administrarem os
últimos sacramentos a todas as pessoas que eram atacadas da grande epidemia,
tanto na vila como na casa da saúde em S. Roque.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 32 v.)
A peste, a fome e a guerra: eis o triângulo maldito que as gentes daquele
tempo mais temiam. Da guerra: pelos homens que nela ficavam, pelo imenso
sorvedouro de braços, de pão e de dinheiro em que elas sempre se tornavam. Das
fomes: pela angústia de sentir o estômago a pedir o sustento que a terra não
dava. Das pestes: do espectro da morte que pairava sobre os homens a seguir a
cada guerra, a seguir a cada fome.
O tempo de peste era o tempo em que Guimarães morria, transmutando-se
numa povoação abandonada, albergue de algumas dezenas de moribundos. Os outros,
todos os que pudessem, fugiam para terras de ares mais salubres, para as
encostas dos arredores, nas faldas do monte de Santa Catarina, bafejadas por
ventos benignos (ao tempo, acreditava-se que a infecção era transmitida pelo ar
que se respira). A ameaça das epidemias era constante, abatendo-se vezes sem
conta sobre as terras de Santa Maria.
1598 foi, uma vez mais, um ano de grandes fomes, tendo-se tomada
importantes medidas para lhes diminuir os efeitos, tendo sido, nomeadamente,
permitida a pesca e a caça, mesmo nos períodos de defeso. Foi igualmente
levantada a proibição que vedava da exportação de gado para a Galiza, permitindo-se
agora que ali fossem trocados por cereais. Estas duas medidas são reveladoras
das extremas dificuldades que atormentaram os vimaranenses naquele ano. Seriam
mantidas em vigor até finais de 1599.
Atrás de uma fome, uma peste. À grande fome de 1598 seguiu-se, em 1599,
uma epidemia de peste bubónica de resultados ainda mais destruidores. O mal
atingia todo o reino: por todo o lado este surto epidémico (a que se chamou de
“peste pequena”, por ser de duração mais curta do que um outro que grassou no
ano de 1569) deixou um rasto de milhares de mortos. Guimarães foi atingida em
toda a sua extensão. Os registos de óbitos dos dias em que grassou a peste pequena, ou não existem, ou são
lacunares. Na freguesia de S. Sebastião, a partir de uma lista elaborada pelo respectivo pároco, Norberta Amorim contou 338 pessoas dadas à sepultura
durante a peste, enquanto que a média anual que ali se verificava por aqueles
tempos andava pelos cinco óbitos. Na minúscula freguesia rural de S. Tomé
da Lobeira (hoje extinta) morreram então 27 pessoas, porção notável da sua
população total. Estes dados ajudam-nos a perceber a dimensão da catástrofe com
que se encerrou o século XVI.
A epidemia introduziu-se na vila de Guimarães durante o mês de Maio. Aos
primeiros sinais da peste dentro dos muros, os moradores de Guimarães,
abandonaram a vila, demandando lugares com ares mais saudáveis. A maior parte,
instalou-se na Costa, onde se instalou uma casa
da saúde. Em 18 de Junho de 1599, as freiras clarissas abandonaram a nau empestada, dirigindo-se para a
Quinta do Paço de Gominhães, em S. João das Caldas de Vizela. Pelo invés, os
seráficos monges de S. Francisco, mesmo com a doença a manifestar-se no
interior do seu próprio convento, dirigiram-se para a Costa, onde administraram
a Casa da saúde, obrando “grandes
maravilhas”, ou para as ruas da vila, em serviço de socorro e assistência aos
contagiados. O mesmo se poderá dizer do cura de S. Sebastião, Andé Freire, que
durante toda a epidemia se manteve permanentemente junto dos seus fregueses,
confessando e ajudando a sepultar mais de três centenas deles.
A própria vereação camarária abandonou a vila, fugindo à infecção (o que não
impediu que um dos seus membros viesse a conta-ser entre as vítimas). A 31 de
Julho, reuniu-se em Urgezes, na ermida de Nossa Senhora dos Remédios. Nessa
sessão, foi feita a nomeação de Frei Gaspar das Chagas para provedor temporal
dos nobres e enfermos, a quem, em sessão de 28 de Agosto, realizada em
Polvoreira, deveriam ser entregues, para provimento do pobres da vila, trinta
alqueires de pão e, “para os do monte”, cem alqueires e trinta rêses. As
quantidades do cereal que se destinavam ao monte e à vila permitem-nos perceber
que seriam muitos mais os que estavam na Costa do que aqueles que permaneceram
na vila.
O quadro da Misericórdia sentiu também algumas baixas provocadas por esta
epidemia. Em 1599 não foi eleita nova Mesa, mantendo-se em funções a do ano
anterior, sendo reduzidas tanto as despesas como as receitas, não se fazendo os
habituais peditórios. Em sessão realizada em 22 de Março de 1600, os mesários
decidiram promover a admissão de vinte novos prmãos menores, “por falta que
havia de irmãos de menor condição, por morrerem de peste”.
Quando a epidemia amainou, os sobreviventes tratam de proceder ao
pagamento de promessas. Assim, os moradores da Lobeira obrigaram-se a
sustentar-se a fábrica da ermida de S. Roque, edificada no monte de Covas,
junto à Igreja. O doutor Jorge do Vale Vieira, que ao tempo da peste de 1599
exerceu o cargo de guarda-mor, mandou
que todos os anos se rezassem sete missas, uma delas cantada, na capela que se
erguia junto à casa da saúde do Monte de Santa Catarina. No voto que então
proferiu, diz-se que “estas missas se dirão por minha alma e de meus defuntos,
e por todas as almas que faleceram do mal da peste de que Deus nos guarde no
dito monte”.
Os desastrosos efeitos deste surto epidémico levaram o Abade de Tagilde a
convencer-se de que “esta seria a peste de que fala o jurisconsulto Manuel
Barbosa e de que faleceram 7.000 pessoas no concelho, atribuída pelo padre
Torcato ao ano de 1575”.
Como já vimos ao tratar da epidemia de 1575, o pensamento do Abade de Tagilde
andará aqui longe da verdade, uma vez que a peste de 1575 não existiu apenas na
mente seiscentista do velho padre Torcato, antes foi duramente sentida na carne
das gentes de Guimarães.
Por largos anos a vila se ressentirá da epidemia que a vergastou quando
findava o século de quinhentos. Assim, um alvará de 1605 irá conceder â Câmara
autorização régia para utilizar o remanescente das sisas, a fim de cobrir o
empenho das rendas da instituição municipal, consequência da peste de 1599.
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