Carro bomba para combate a incêndios, do séc. XIX. |
30 de Julho de 1875
Às 5 horas da tarde dão
as torres da cidade sinal de incêndio, o qual era violento, na casa do Bravo,
em Urgezes; estando nos trabalhos de extinção a companhia dos bombeiros
municipais sob o comando do seu inspector, um popular, Joaquim Mendes
Cerqueira, “O racha de S. Lázaro”, homem de mau génio (mestre fabricante exímio
de tesouras, muito má língua) ordena a uma bombeiro guia que dirija a água para
outra parte do edifício e esforçar-se por lhe tirar o governo, e aparecendo
nesta ocasião muito encolerizado o administrador do concelho ordena ao guia que
entregue o governo ao dito popular, e como resistisse, empurra-o para o lado do
incêndio, e acudindo o inspector (José Ferreira de Abreu) a ponderar,
respeitosamente, ao presidente da Câmara, que este ali não tinha a dar ordens,
o presidente vocifera e gesticula e o inspector ordena ao guia que entregue a
agulheta e demite-se; o presidente ainda depois oferece pontapé ao guia que já
tinha empurrado, valendo ao presidente o não ser mesmo nesta ocasião pago por
todos os bombeiros do que fez ao guia, os esforços e pedidos do José Ferreira
de Abreu, irmão do inspector. A companhia também se demitiu.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito
da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 82 v)
Na tarde de 30 de Julho de 1875,
os sinos de Guimarães tocaram a chamar para incêndio. Estava a arder uma casa
em Urgezes. Para combater o sinistro, seguiu a companhia dos bombeiros
municipais, às ordens do inspector José Ferreira de Abreu, que dispôs no
terreno os meios disponíveis de acordo com a estratégia que definiu para o
combate ao fogo. O bombeiro José da Costa Pereira estava a guiar a água da
bomba para uma zona do edifício onde as chamas eram mais ameaçadoras,
quando chegou à sua beira um tal Joaquim Mendes Cerqueira, homem de mau génio. O que se passou a seguir daria
um bom argumento de cinema burlesco, caso já tivesse sido inventado.
Joaquim Cerqueira, conhecido como
o Racha, de S. Lázaro, era fabricante
de tesouras. Deu ordens ao bombeiro Costa Pereira mandou dirigir a água para
outra zona da casa. O bombeiro não o fez, por não reconhecer ao Racha nem autoridade nem competência
para lhe dar ordens. Estava o bombeiro a tentar cumprir as ordens que recebera
do seu superior hierárquico e o tesoureiro a tentar desviá-lo, à força, para
onde teimava, quando faz a sua aparição em cena o presidente da Câmara de
Guimarães, Rodrigo de Menezes,
… todo encolerizado e desesperado, com os olhos
chamejantes, e suor banhando-lhe a fronte a qual limpava repetidas vezes a uma toalha que
trazia ao pescoço, produzido por várias causas — e despótica e arbitrariamente manda que o guia
entregue o cano da bomba ao referido Joaquim Medes, e como ele resistisse por entender que ia contra as ordens
do seu inspector, o snr. presidente empurrou-o violentamente para o lado aonde
o fogo estava mais ateado que por pouco não o devorou...
Acorre o inspector da companhia
de incêndios, José Ferreira de Abreu, que tenta convencer o presidente da Câmara de
que ali não tinha jurisdição, mantendo as ordens que havia dado ao bombeiro
responsável por guiar a água naquele local. O Presidente da Câmara não acatou a
resolução do inspector. Vociferou,
berrou, gritou e gesticulou o mais ridiculamente
possível. Perante isto, o inspector da companhia de incêndios, viu-se forçado
a entregar o cano da água ao Racha,
apresentando em seguida a sua demissão.
Não satisfeito ainda o snr. presidente
pelo vergonhosíssimo
papel que tinha representado, momentos depois ofereceu uns poucos de pontapés ao guia, primeiro signatário deste
escrito, a quem já tinha empurrado violentamente.
Ao saberem do que se passava, os
companheiros de José da Costa Pereira teriam consumado a sua indignação,
punindo presidente da Câmara do seu péssimo procedimento, não fora o irmão do inspector, ele próprio sub-inspector, os ter
dissuadido de chegarem a vias de facto.
Dias depois, seis membros da companhia municipal de incêndios
assinavam um comunicado, que seria publicado no jornal Imparcial e que se reproduz abaixo, no qual não pouparam nas
palavras com que descreveram a intromissão do presidente da Câmara no seu
trabalho, mostrando pública
e manifestamente quanto despreza
esse miserando e bulhento.
Note-se que, pela sua acção no incêndio trágico
do Toural, de 1869, o inspector, José Ferreira de Abreu,
o seu irmão sub-inspector, Manuel Ferreira de Abreu, e
António José Machado, um dos subscritores do texto publicado no Imparcial, tinham sido condecorados pelo
Governo com a medalha de prata ao mérito, filantropia e generosidade aos que se
distinguiram com serviços no incêndio de 4 de Junho.
E qual terá sido o motivo da intervenção do "zelozo" Racha que despoletou a confusão? Segundo os bombeiros, salvar três pipas de vinho.
E qual terá sido o motivo da intervenção do "zelozo" Racha que despoletou a confusão? Segundo os bombeiros, salvar três pipas de vinho.
Comunicado
Snr. redactor,
Pela primeira vez
que vimos ao elevado e sublime santuário da imprensa, sobremaneira nos penaliza termos de patentear à luz da publicidade o procedimento
ousado, descortês, indigno e despótico de um homem, a quem no alcácer das ciências foi ensinada a boa educação, o respeito da lei e da justiça. E este sentimento cresce de ponto ao lembrar-nos que esse homem preside aos destinos deste
município, que talvez lá fora seja tido por pouco ou nada ilustrado, consciencioso e independente em o ter elegido.
Mas que importa?
Acima de tudo está a honra e a dignidade de toda uma companhia e de seu chefe, digno de todo o respeito e consideração.
O dever impõe aos abaixo assinados como membros dessa companhia, e principalmente ao primeiro signatário, como vítima da arbitrariedade e ferocidade do snr. presidente da câmara, a obrigação de se desafrontarem da infame acção por ele praticada, não por meio de empurrões e oferecimento de pontapés, as
sim por meio da palavra, pois que é esta a única arma de que costumam lançar mão os homens de bem.
Começaremos a
narração do facto que nos impele a escrever estas linhas,
com todas as suas
circunstâncias, deduzindo em seguida as consequências que a mente
nos sugerir.
Na sexta-feira passada, pelas cinco e meia horas da tarde, deram as
torres sinal de incêndio, que se manifestou na casa do Bravo, freguesia de Urgezes, subúrbios
desta cidade.
A companhia dos incêndios, à qual pertencemos, apresentou-se no local do sinistro, e às ordens
do seu ilustrado e digno chefe fez as evoluções e manobras que a sua inteligência e experiência lhe sugeriram, a fim de extinguir o fogo que já então ameaçava toda a casa.
O primeiro signatário deste comunicado, como segundo guia da
3.a bomba, estava-a dirigindo de modo que fosse lançar água numa parte da casa onde
o logo estava mais ateado, conforme as ordens do snr. José Ferreira de Abreu, única autoridade a quem devia obedecer.
Aconteceu, porém, que, chegando-se a ele (julgando-se quiçá mais sábio e com mais autoridade do que o snr. Ferreira de Abreu) o snr. Joaquim Mendes da Silva Cerqueira Guimarães, disse que dirigisse a água para outro lugar e
arrebatadamente se esforçou para lhe tirar o seu governo ao que o guia se opôs, pois que ele não tinha autoridade alguma de o mandar.
No meio desta
polémica aparece de repente o snr. Rodrigo de Menezes, presidente da câmara, todo
encolerizado e desesperado, com os olhos chamejantes, e suor banhando-lhe a
fronte a qual limpava repetidas vezes a uma toalha que trazia ao pescoço, produzido por várias causas — e despótica e arbitrariamente
manda que o guia entregue o cano da bomba ao referido Joaquim Medes, e como ele
resistisse por entender que ia contra as ordens
do seu inspector, o snr. presidente empurrou-o violentamente para o lado aonde o
fogo estava mais ateado que por pouco não o devorou...
Nesta ocasião o digníssimo inspector acode e mui respeitosamente pondera ao snr. Rodrigo de Menezes, que as suas atribuições como presidente da câmara não anulavam as ordens por ele dadas e que por isso entendia não obrar convenientemente.
O snr. presidente
não podendo suportar que alguém demonstre
quais os seus deveres, às cordatas palavras do snr. José Ferreira de Abreu vociferou, berrou,
gritou e gesticulou o mais ridiculamente possível, a ponto de não obstante a cordura e prudência
de que é dotado o snr. Abreu, se viu impelido a mandar entregar o cano da bomba
àquele snr. e demitir-se do cargo de inspector da companhia
dos incêndios.
Não satisfeito ainda o snr. presidente
pelo vergonhosíssimo papel que tinha representado, momentos depois ofereceu uns poucos de pontapés ao guia, primeiro signatário deste escrito, a quem já tinha empurrado
violentamente.
Sabido que foi
imediatamente o sucedido por toda a companhia, a indignação foi tal que st não fossem as instâncias e pedidos do snr. Manuel Ferreira
de Abreu irmão do digno inspector, o snr. presidente da câmara talvez aí mesmo fosse
punido do seu péssimo procedimento.
Eis o facto. Não necessita ele de comentários para claramente patentear a hediondez de uma tão infame acção, praticada por quem devia ser o primeiro a respeitar a todos, principalmente aqueles que sabem cumprir com os seus deveres e obrigações.
A indignação, porém, dos abaixo assinados, intérpretes dos sentimentos de toda a companhia, não podem
deixar de fazer algumas considerações que ele reclama.
Quais as razões que
levaram o presidente a proceder tão indignamente?
Quer o público sabê-lo?
Foram duas — o desejo de salvar três pipas de vinho
(embora fosse devorada
pelas chamas toda a casa) e a mesma que o impeliu a querer estrangular o redactor da “História” na hospedaria denominada então da Joaninha, a dar uma
bofetada numa inofensiva mulher na Póvoa de Varzim, a
fazer uma figura ridícula no jantar dado em Santo Tirso pela companhia do caminho-de-ferro de Bougado, e a outros factos vergonhosos,
que sabidos são por todos.
Não nos admira, pois, que o snr. presidente ultrajasse e ofendesse
toda a companhia dos incêndios na pessoa de um dos seus membros, primeiro
signatário deste comunicado e do seu inspector, que tantos esforços e
sacrifícios tem feito e empregado, para que ela esteja num estado tal de ser considerada como uma das melhores do Reino, e de ignorar o que dispõem
os artigos 9.º, 19.º, 39.º, 40.º e 49.º e § único do Regulamento da mesma companhia que devia ser o
primeiro a observar.
É na verdade vergonhosíssimo
que Guimarães, berço da monarquia portuguesa, nossa cara terra natal, tenha à
sua frente como presidindo aos destinos dos seus munícipes um homem que pratica
o facto que acima deixámos narrado, quando tem em seu seio pessoas inteligentíssimas,
mantenedoras da ordem e respeitadoras da lei e da justiça.
Bem-haja o snr. José
Ferreira de Abreu, nosso digno inspector, que pediu a sua demissão para não tornar a sofrer
mais arbitrariedades e ofensas do snr. Rodrigo de Menezes, que decerto
ofenderam bastante, mas que serviram de incentivo para toda a companhia mostrar
pública e manifestamente quanto o preza, estima e despreza esse miserando e bulhento.
Aproveitamos esta
ocasião para agradecer cordialmente ao snr. José Ferreira de Abreu e a seu mano
o snr. Manuel Ferreira de Abreu, aquele como inspector este como sub-inspector, o quanto nos estimaram sempre durante todo o tempo em que tivemos a honra e
felicidade de os termo como nossos chefes.
Pela inserção destas linhas, snr. redactor, lhe ficarão sumamente agradecidos os
De
V. etc.
Guimarães, 2 de Agosto
de 1870.
José da Costa Pereira
João Mendes Guimarães
Manuel Peixoto Guimarães
Damião José de Faria
Francisco Caetano
José Pereira Pantaleão
António José Machado
Cândido José Gonçalves
Imparcial, 3 de Agosto
de 1875
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