A Questão do Seco (2)


Mistérios
— Era num domingo, pela manhã, às dez horas, minuto para trás, minuto para diante.
Um alto personagem, cujo nome nos disseram muito ao ouvido, atravessava rapidamente algumas das nossas ruas e ia dar consigo na loja dum barbeiro.
Os manes de Fígaro estremeceram de prazer nos Elísios, e o seu colega de Guimarães, intimado imperiosamente da urgência da escanhoadela do extraordinário freguês, atirou-se apressada, mas reverentemente aos queixos do sobredito, deixando para mais logo a digestão do pasmo que lhe causara tão espectaculosa visita.
A obra fez-se num lampo.
S. exa. pagou também apressadamente, e por sinal numa moeda, que exalava um acre cheiro a licitações em inventário de menores, e dirigiu-se precipitadamente a uma das barreiras, onde o esperava um carro, cujas alimárias largaram, mal que o ilustre barbeado se meteu dentro... do carro. S. exa., passada uma hora, pegou no sono — louvável prevenção (sic) contra as diabruras, que podiam obrigá-lo a passar a noite em claro.
Em Famalicão, os burros comeram urna sopa, enquanto s. exa., depois de abrir um olho, por onde viu que ainda não chegara ao Porto, continuava a sua sonata, agora entrecortada por uns suspiros tão estranhos, que afugentavam os curiosos, se vinham com tenções de devassar o conteúdo da carroça.
Horas depois, o nosso dorminhoco entrava na cidade da Virgem; demorava-se o tempo necessário para despachar uns negociozinhos, que não são da conta de ninguém, e voltava com a mesma pressa, e não sabemos se com os mesmos suspiros, ao seu ponto de partida.
Agora o mistério. Enquanto o extraordinário personagem moía os ossos nestas violentas idas e vindas, os seus íntimos diziam por aí aos que lho não perguntavam que s. exa. não dera o seu passeio higiénico do costume, por estar incomodado com qualquer coisa... — como se ir ao Porto fosse crime ou pecado!...
Nenhuma dúvida que um juiz de direito (até aqui podemos nós chegar, sem romper o sigilo), nenhuma dúvida que um juiz de direito não pode sem licença sair da sua comarca, mas se a lei não faz uma excepção a favor dos juízes escanhoados de fresco, pode fazê-la, e isto basta.

Justiça de Guimarães, n.º 4, 4 de Março de 1872 [texto não assinado, como todos os que foram publicados no Justiça de Guimarães. O seu autor é Francisco Martins Sarmento.]

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