A Questão do Seco (1)

Avelino da Silva Guimarães (retrato a óleo de Abel Cardoso)

O segundo número do jornal que se publicou para dar voz à revolta do foro de Guimarães contra as arbitrariedades do juiz Sousa Seco, abre com um texto onde se narram os acontecimentos que conduziram uma situação de incompatibilidade latente a um conflito sem tréguas. A gota  que fizera transbordar o copo da paciência dos advogados de Guimarães foi a suspensão, pelo juiz Seco, de Avelino da Silva Guimarães do exercício da sua profissão de advogado, sob a acusação de o ter injuriado num agravo que dirigira à ao Tribunal da Relação do Porto, a propósito de actos do juiz num processo que tinha a ver com um tesouro encontrado na Quinta de Aldão por dois criados, que dele se apropriaram. Avelino da Silva Guimarães, além de advogado prestigiado, era um cidadão de Guimarães destacado, tendo sido, anos mais tarde, um dos fundadores da Sociedade Martins Sarmento. À altura da "questão do Seco" era Presidente da Câmara de Guimarães.
O texto do Justiça de Guimarães, que a seguir se reproduz, saiu da pena de Francisco Martins Sarmento. Termina com a fórmula "acusámos o juiz Seco de", enunciando um conjunto de acusações denúncias de malfeitorias do juiz Seco. Esta fórmula será repetida nas edições seguintes, sendo a lista sucessivamente acrescentada de novas denúncias.

Foi suspenso do exercício da advocacia o nosso amigo Avelino da Silva Guimarães, a pretexto dumas injúrias e difamações, escritas há mais de oito meses, na minuta dum agravo, que pende ainda da Relação do Distrito.
Temos a vista a sentença da nova alçada, com a especificação das injúrias e difamações, que tanto tempo levaram a chegar ao centro da encorreada sensibilidade do juiz Seco.
Ei-las aqui, com a pontuação do original:
“ter escolhido adrede, para tema da aludida minuta, um texto em que se insinua o mesmo juízo de - despótico e tirano.”
“haver apostrofado e insinuado de sofistas e paralogistas os funcionários do mesmo juízo.”
“levar o seu arrojo, em atribuir-lhes a fins reservados e ilícitos; e cálculos!* os factos que acusa e infundadamente aduz de não terem desde logo anunciado a achada do tesouro e de haverem conservado o processo em segredo, sendo para notar por bem significativos os textos de que ainda se serviu = felix qui potuit rerum cognoscere causas latet anguis— e o caso é outro, faltando talvez para complemento, o dizer abertamente que as autoridades do juízo calcularam conservando o processo em segredo, sem anunciarem a achada do tesouro, apoderarem-se do mesmo tesouro.
“concluir com dizer, que haveria pelo menos (anunciando-se entende-se) um quase cumprimento da lei = salvar-se-iam as aparências; não seria tao ofendida a dignidade do foro (!!!)”.
Nesta farragem de português bordalengo tudo e para surpresas.
Dar o nome de injúrias e difamações à defesa do advogado que aponta, para os destruir, os sofismas e paralogismos do seu adversário; que demonstra o caos e confusão dum processo: que prova as violações da lei que nele houve etc. etc. — dar a tudo isto o nome de injúria e difamação e uma destas lembranças burlescas, que só brotam na pequena cabeça do juiz Seco e por causa das quais já o vimos pernear na picota do ridículo, amarrado lá pela Associação aos Advogados de Lisboa e pelo ilustre advogado portuense Custódio José Vieira.
Há porém duas acusações gravíssimas. O advogado chamaria despótico e tirano ao juízo e diria que o juiz intentara apropriar se dum tesouro, que tinha dono.
Vamos ver o que isto é.
O juiz declara, ainda bem, que a acusação de despótico e tirano se contem num texto que serve de tema a minuta. Aqui está o texto, que não era tema da minuta, mas uma epígrafe, tirada dum escritor espanhol:
“Isto é essencial em todos os países, em que não domina um despotismo sem limites: a forma de governo nada influi: para isto se estabeleceu a divisão de poderes, cujo principal objecto e salvar o princípio de liberdade no interesse de todos; e onde estes limites se não respeitam, não o duvideis, senhores, não rege a lei; impera a tirania.”
D. P. Gomes de la Serna.
Advirta-se agora que um dos pontos, discutidos na minuta, versava sobre se o competente para julgar o processo era a autoridade administrativa ou judicial. Dito isto, seria fazer ofensa à inteligência do leitor tratar de mostrar-lhe a justeza daquela citação e a refinada ma fé do juiz, cuja bisbilhotice andou a esquadrinhar numa formula abstracta uma injúria a sua sacrossanta pessoa.
A segunda acensação é uma coisa que não tem nome.
a priori se poderia afirmar que não há em Guimarães advogado tão imbecil que se lembrasse de atribuir a um juiz o plano impossível de empalmar um tesouro sobre cujo processo estavam fitos os olhos e a atenção d'uma cidade inteira; mas o que também ninguém poderá acreditar o que haja um juiz, tao abandonado de Deus e dos homens, que, para saciar a sede duma vingança que se lhe derranca na alma, se ponha ajuntar e combinar, uns textos desgarrados e vagos, obrigando-os a dizer o que eles nunca disseram. E o que transcende tudo o que possa esperar-se de todos os Scapins do mundo e a soez velhacaria, com que dum erro de cópia, visível a toda a gente, se forja uma acusação de tal ordem! De calcos, em que o copista desfigurou o cahos [caos], o juiz lê com delícias cálculos, e enfileirando —  cálculos — latet anguis — a estranheza de se fazer em segredo o que exige a maior publicidade — a acusação de se não ter feito imediatamente (palavras da lei) anunciar a achada do tesouro — o digno magistrado, sem que a consciência lhe doa, sem que a vilania da acção o espante, vem clamar que o advogado o acusa de querer empalmar um tesouro e suspende-o por isso!!
Não há aqui qui-pro-quo por curteza de inteligência. O caluniador deixou pegadas. É mais que significativa a inépcia da declaração de que faltou talvez dizer abertamente alguma coisa.
Como?! pois tu, juiz, lavras uma sentença, que vai tirar o pão a um advogado, e não sabes afirmar categoricamente se falta ou não falta alguma coisa, que constitui essencialmente a prova do delito porque o punes?! Não sabes se estão ou não estão escritas numa minuta as palavras que ofenderam a tua prosápia, e vens gaguejar que talvez faltasse dizer abertamente essas mesmas palavras que tens a complacência de inventar, devassando as intenções dum escritor e falsificando algumas letras?!
Falsário e caluniador é de mais; mas tudo isso e o juiz Seco e as provas aí ficam mais claras que a luz do sol. O advogado diz claramente que o processo é tudo confusão e caos; que se não vê um raio de luz nestas trevas; que é incompreensível o segredo dum processo em que a lei exige toda a publicidade; que foi violar alei não ler anunciado imediatamente a achada do tesouro; o juiz com as suas interpretações de Sganarello e o seu ódio ferino, transtorna, enreda, confunde tudo isto, e sai-se a bradar que o injuriam e difamam, acusando-o de querer empalmar o tesouro!!
Invente-se um nome para isto, porque não o há nos dicionários.
Mas o que há no Código Penal é uma punição para este delito, e nós aqui acusámos o juiz de ter dado por ódio uma sentença manifestamente injusta.
Se neste país se não perdeu aí a última noção do justo, convém que se expulse da cadeira da magistratura este juiz impossível, que verga sob as formidáveis acusações, que este jornal lhe tem feito, e que vamos recapitular:
Acusámos o juiz Seco de ter dado por ódio uma sentença manifestamente injusta.
Acusámos o juiz Seco de ter mandado riscar e trancar uma promoção do Delegado do Ministério Público.
Acusámos o juiz Seco de resistir a uma ordem do Tribunal Superior e não ter restituído a uns órfãos o dinheiro que lhes levou indevidamente.
Acusámos o juiz Seco de ler proibido a um escrivão que passasse uma carta testemunhável a uma parte, a qual já tinha negado todos os outros recursos.
Se para estes crimes não há um castigo pronto; se a justiça e a lei são palavras vãs, não se espantem então que renasça o período selvagem da vindicta pessoal.
Um abismo chama outro abismo.



* O advogado tinha escrito cahos [caos]; o escrevente pôs calcos; o juiz quis ler cálculos. O texto diz que o processo é todo caos e confusão.

Justiça de Guimarães, n.º 2, 19 de Fevereiro de 1872 [texto não assinado, como todos os que foram publicados no Justiça de Guimarães. O seu autor é Francisco Martins Sarmento.]

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