S. Nicolau (Bari) |
Em 1944, o
pregão voltou a ser escrito por Delfim de Guimarães, que também foi o autor do
texto das Danças deste ano. Vasco de
Oliveira Martins, estudante do sexto ano, foi quem o leu. O Comércio de Guimarães escreveria que “tem graça e burila com subtileza
alguns casos citadinos, que arrancaram, por vezes, fartos aplausos”. É dedicado
à D. Aninhas.
Não falta uma
referência entusiástica ao Vitória, que tinha acabado de vencer mais um
campeonato distrital de futebol.
A guerra
continuava como pano de fundo e, com ela, a falta de géneros. Era o vento que
tudo levava, o bacalhau, o azeite, o atum, as sardinhas, os ovos, as ervilhas,
o presunto, as pencas, o tomate. E o arroz também:
Levou-nos o arroz, aquele arroz de frango
Malandro, bailarino, aos pinchos, gorduroso,
Aquele arroz no tacho a latejar em tango...
Levou o seu irmão de forno saboroso.
O Pregão de S. Nicolau
Recitado em 5 de Dezembro de 1944
pelo sextanista
Vasco de Oliveira Bastos
Este “Pregão” dedico-o à nossa Ser.’Aninhas,
Aquela que aturou as estroinices minha
E a quem nunca paguei
um calo de almirantes….
— Mania assaz revelha em bolsa de estudantes…
Meu calote atingiu o cume de um tostão...
Com juros hoje, pois, liquido-o
no “Pregão”,
Pedindo-lhe clemência, aqui,
de mãos erguidas,
Para meus distúrbios maus e
minhas ruins partidas...
Que a santa me perdoe a dívida barbada
De há quase melo século a hoje
alfim... saldada...
A Tradição não morre, a Tradição é eterna!
Que o derrotismo varra o seu agoiro tolo...
A nossa Festa é o facho, é a luz duma lanterna
Gigante a iluminar a Graça pólo a pólo...
Banir a Tradição seria a treva enorme,
O supremo atentado à Luz da Humanidade!
Há a força de Deus, poder que nunca dorme.
Que revigora a Fé, a Crença, a Santidade.
Enquanto em nossa Terra esvoaçar ao vento
A capa do estudante, a velha capa preta,
Não faltará ao Santo egrégio luzimento,
Terá sempre a cantá-lo a lira dum poeta.
Enquanto em Guimarães houver lindas donzelas.
Um coração que pulse, um peito levantado,
Será a nossa Festa um céu cheio de estrelas,
S. Nicolau será o nosso Santo amado!...
*
* *
Quando é que findará o inferno deste mundo?...
Quando é que os homens bons darão o fim à guerra?...
O vento é cada vez mais rijo e furibundo.
Sacode, lés a lés, o mar, o céu, a terra!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tudo o vento levou!... É um gangster o
vento!...
Pior que o Lampião, horrendo qual Landru,
Ele mia, assobia e uiva em movimento,
Tem o rabo maior que o próprio Belzebu...
Tudo o vento levou!... Levou o bacalhau
O único fiel amigo do Zé-Broa...
O vento, francamente, é mau, é muito mau!...
— Mas quem lhe chame bom inda há muita pessoa…—
Levou-nos o arroz, aquele arroz de frango
Malandro, bailarino, aos pinchos, gorduroso,
Aquele arroz no tacho a latejar em tango...
Levou o seu irmão de forno saboroso.
Tudo o vento levou!... Levou-nos o azeite,
A gota da candeia e do badejo assado...
Levou, por baptizar, o deleitoso leite,
Mais branco que o luar, purinho no canado...
Tudo o vento levou!... Levou-nos as batatas,
Levou-nos o feijão de arroto estomacal...
Levou-nos o atum, sardinhas, tudo em latas,
E levou-nos da Pisca o célebre nabal!...
Tudo o vento levou! Levou-nos as ervilhas,
Os ovos, o presunto, as pencas, os tomates,
Tudo, tudo levou para um milhão de milhas,
Com silvos, repelões e trágicos embates...
Tudo, tudo levou!... Até o Rei-Afonso
Levado a novo posto, o quanto sofre lá!...
Acha o lugar deserto, um tanto só, esconso,
Não tem o seu Toural, a vida, o bruháhá...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Perdão: nem tudo foi... Muito ficou, perdão...
Ficaram os toneis a abarrotar de vinho...
Lá em cima, na Avenida, a casa da Estação
E o grande monumento ao nosso Molarinho...
Ficaram, que tormento! os açambarcadores,
Tão amigos do Zé, do típico lanzudo,
A fazerem na sombra uns jeitos, uns favores,
Que nos levam camisa, a carne, o osso e... tudo...
Ficou muita caleira aberta nos beirais
E ficou a carroça imunda do Correio!...
Ficaram num Café os Intelectuais
E os palavrões da rua em vivo
tiroteio...
Ficou a linda Penha um tanto ao abandono,
Ficou a Antoninha imperial, correcta...
No pedestal ficou mais triste o Pio Nono
Por já não ver na estrada a morta caminheta...
Ficou o arraial de imundas sardinheiras,
Sem postura a calcar posturas torto e direito.
Ficaram os montes de pedras e pedreiras
Do projecto que foi quase ao nascer desfeito...
Ficou, ficou o Vitória!... É duma cara só!...
Eh! lá, rapaziada! o campeonato é justo!
Vede o Tónio Martins, mais alto e mais
liró,
Num grande abraço ao mestre, ao velho Alberto Augusto!...
Ficou... mas não se diz... Agora isto é segredo...
— Se o não revelo, aqui, rebento e sinto mágoa...—
Para nós, muito baixinho, a coisa vai a medo!
Ficou a grande bicha, a enorme bicha de
águal…
*
* *
Como da praxe antiga é proibida a entrada
À sovela e balcão na Festa Nicolina...
Minerva o quer assim, a Deusa não quer nada
Com quem não tem sebenta e quem não traz batina...
*
* *
Tricanas que fiais e que teceis o linho,
Lindas colchas de seda e teias de riscados:
Connosco conjugai o verbo amar, limpinho,
Que nós damos lições de mestres consagrados...
E vós, ó rouxinóis, gaiatas costureiras,
Que trinais, ao rodar das máquinas, canções:
Vinde com vossas mãos de magas feiticeiras
Nossas capas cerzir, cheiinhas de rasgões...
… Que galantes que sois na chita do vestido.
Chita que vos ondula o corpo em mil carícias!...
Bendito esse Concurso esplêndido,
garrido,
Que a Portugal lançou o popular “Notícias”.
*
* *
Senhoras: numa quadra eu sintetizo o Céu
Do vosso Olhar de Luz na luz dos nossos olhos...
Que seja eternizada a luz que Deus vos deu
Na luz do nosso amor rezado de giolhos...
Senhoras: as maçãs são pomos de oiro e rosa.
As tereis, amanhã, em lanças faiscantes...
A nossa Oferta é assim, gentil,
cavalheirosa,
De brasão ancestral a Oferta de
estudantes...
Camaradas: ao alto as vossas maçanetas!...
A hoste não desarma!... A luta é hoje acesa!...
No campo vencerão e morrerão atletas,
Rugindo, praguejando em rábida fereza!...
Dos Zabumbas fazei vossos canhões
pesados.
Das Caixas manejai letais
metralhadoras!...
Que fiquem do ruído os povos assombrados,
Que ele seja maior que as bombas voadoras!
Dezembro de 1944.
Delfim de Guimarães.
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