O pregão do ano de 1941 foi
escrito por Luís Filipe Coelho, que já escrevera o de 1929. Foi lido por
Fernando da Encarnação Rodrigues. É dedicado aos pregoeiros vivos (aqui,
pregoeiro não significa recitador, mas sim autor dos textos).
Luís Coelho (1910-1952) foi professor,
jornalista e poeta. Foi também presidente da Associação Artística. Destacou-se
também como encenador.
Em 1941, a Europa vivia um tempo de agonia:
E o mundo a agonizar já dobra como vime;
É o vício e a virtude jogando a sua sina,
É um mundo que ri e um mundo que assassina!
Mas havia lugar para a esperança:
Tende calma, porém, ó almas de eleição!
Em breve, a luz forte deste festim pagão
Entrar-nos-á no peito, assim como em segredo,
Para acabar com o mal e dissipar o medo.
FESTAS NICOLINAS EM GUIMARÃES
Bando Escolástico
Recitado
em 5 de Dezembro de 1941
pelo sextanista
Fernando da Encarnação Rodrigues
AOS PREGOEIROS VIVOS, HUMILDEMENTE
DEDICA O AUTOR.
Mal extintos ainda os ecos centenários,
Vejo riscar a trepa, em zigs-zags vários,
Centelhas de clarões, ígneas, fosforescentes,
Que vão de polo a polo e vêm queimando as gentes!
Sinto sob os meus pés estremecer a terra
E dos botões indago o porquê desta guerra (?)…
Silêncio sepulcral de cortar à faca,
E capaz de abafar sozinho uma ressaca.
Mais subia em pavor o mar do pensamento
Quando a resposta veio, apenas, num momento:
— “O amor já não existe. Só a maldade, enfim,
Tem dons de senhoria e a gana de Caim!
Da palavra e da honra (atributos humanos),
Nada mais que nos reste a não ser vis enganos...
É a chancelaria a urdir as falsas teias,
A venal ambição a cercar-nos de peias,
E é o mal contido ódio a provocar desgraça
Num espasmo de escárnio e de ignorância crassa;
São cheios os quartéis, destruídas as igrejas,
Num sensualismo torpe a fomentar invejas;
O ceptro da justiça é o símbolo do crime,
E o mundo a agonizar já dobra como vime;
É o vício e a virtude jogando a sua sina,
É um mundo que ri e um mundo que assassina!”
Fugiu do peito humano o génio da alegria
E o génio do ideal tombou em ruinaria!...
Fermenta noite e dia a lava dos vulcões
A anunciar horrores e sérias destruições!...
Não há dor que resista ou bem segura porta.
Não existe o dever.
A
consciência é morta.
* * *
Tende calma, porém, ó almas de eleição!
Em breve, a luz forte deste festim pagão
Entrar-nos-á no peito, assim como em segredo,
Para acabar com o mal e dissipar o medo.
— Que importam luto e dor, as fazendas e as vidas,
Se logo a paz vier para as almas doridas?!
— Que importam peste e guerra, o próprio afim do
mundo,
Se o sol da liberdade abrir lindo e jucundo?!
— Que importa ainda o roubo, e as mal forjadas culpas,
Se o merceeiro pagar a rir as suas multas?!
— Que importa, enfim, ó céus, não haver que comer.
Se a natureza o fez... com a mira de o vender?!
Alguém mandar-nos-á, talvez, lamber sabão
Pretendendo mostrar a nossa sem razão...
Embora seja assim, ninguém nos calará
Porque a Hora Suprema é certo que virá.
* *
*
Mas, O vulgo lá diz: — Tristezas, hoje em dia,
Não valem o que são.
Que
suba em ufania.
A festa a Nicolau, santo amado e querido.
Para devoção nossa e amor não fementido;
Que a juventude cante a formosura, a graça,
E leve sol e vida à geração que passa;
Que renasça o vigor dos anos verdejantes
E, entre o clamor febril, a capa de estudantes
Seja a sacra bandeira, o guião protector
Do puro amor ideal nas almas ainda em flor;
E onde a Descrença more — e vive com certeza —,
Levai-lhe a fé eterna, a Esperança portuguesa,
Pois sinto dentro em mim oito séculos de História
A reviver em força o que dita a memória...
A memória! a memória! essa lei de atracção
Que vem de muito longe e impele o coração
A beber a alegria, em doce embriaguez,
Para sorrir de saudade, ao menos, uma vez!
Recordar o Passado é recordar o céu!
— Assim Arnaldo o disse e assim o escreveu.
E, se a vida de um moço estua em cachão,
Com extremos de amor ou de forte paixão,
A nossa já andada, e presa de alma e vida,
Só vive da lembrança às vezes mal nascida!
“Como esta vida é curta”! — ó meu velho Delfim
De cabelo grisalho e de rugas sem fim…
— E vós que me dizeis! — ó Bráulio extraordinário,
Ó sábio João de Meira e ó Padre-comissário!
Tu, Albano Belino, em quem o bom saber
De experiência feito, era feito a valer!
E ainda todos vós, poetas e irmãos afins.
Que resposta me dais? — Fala, ó Leão Martins!
Em verdade vos digo: — A vida não seduz
A menos que nela haja o exemplo de Jesus.
Porque, ai!, a mocidade é como a verde
palma
Que, mirrando-se, traz o Inverno à nossa alma.
* * *
Agora, amigos meus, vá de assunto mudar
Visto que o tempo urge e é bom principiar:
— Passemos em revista, ao jeito dos antigos,
A vida citadina e os gestos dos amigos.
Em primeiro lugar, nasça em recordação,
A festa ao Zé de Pina — um mestre de intuição —
Que, pelo seu sacrifício e muita urbanidade,
Bem merece que tenha a “mercê” da cidade.
— Oh, de bombas tratar, não é ofício leve.
Embora julgue mal quem tal mister não teve.
Depois desta lembrança a firmar claro intento,
Num instante se muda o rumo ao pensamento!
... Já a amplidão dos céus com nuvens se escurece
E da lua se mostra o palor que arrefece.
A gente, um nada lassa, ignora as duras leis
Da parte de Morfeu.. Acordada a vereis
A desprezar o leito, asinha e cuidadosa,
Lembrando um cidadão que, pela noite duvidosa.
Dá largas ao seu afecto e vício irreverente...
Qual Diógenes moderno, arguto e indiferente,
Mune-se da candeia, alumia seus passos,
E pelas ruas caminha a descobrir seus traços.
Daqui para acolá, o estranho viandante
Retorce-se na treva, e de olhar penetrante,
O seu “Homem” procura. Apalpa e só gradua...
E quando bem o pensa, ergue a voz muito soa,
E através dum funil, rebenta e se estiola
Numa rabuge igual ao frenesi do Bola.
Ouvem-no então dizer uns ditotes brejeiros
Contra os instintos cruéis dos amigos padeiros
E dos reles mastins que são os seus iguais...
A violência reclama em ódios canibais
Para quem da lei abusa e é um pecador...
Invectiva o suborno e o açambarcador,
Proclamando a seguir: - Castigo para o mal
Decerto o encontrareis no Código Penal.
* * *
Ó minha Guimarães! Ó Guimarães velhinha.
Como o teu doce amor me quebranta e definha!
Tu, que tiveste dons de subida grandeza
Nesses tempos de antanho e perdida realeza,
Hoje contas de ti graves memórias tristes
E duras mágoas tais a que tu não resistes:
— E o rei-Fundador posto na escuridão
A ter do Molarinho uma igual condição…
— Também o Mestre Gil — homem de fama e glória —
Se vê no esquecimento e relegado à História...
-E S. Dâmaso papa, a excomungar na morte
A ingratidão humana... e a sua pouca sorte...
— E é ainda, meu Deus, os Mortos doutra guerra
A regatear em preço a defesa da terra!...
...fias, porque nada é mau — e nos “palões” eu caio —,
Vereis em breve a estátua a Alberto Sampaio
Posta naquele largo, asseado e arranjadinho.
Que para as Trinas é... o seu melhor caminho.
E porque isto progride, ao começo e no fim,
Verei a bela Ninfa a alegrar o jardim
E a cortejar o Fauno, em namoro pegado.
Mas há mais: um quartel novo e bem equipado
Os bombeiros terão nas bandas do Proposto;
E mesmo pegadinho, erguido em ar de gosto.
Do Município o Estádio o perpetuar em glória
A fama e o valor do nosso audaz Vitória.
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Mais além! Mais além! — eis a grande divisa
Que é perfeito augúrio em voz de “pitonisa”...
Progredir é andar, e tudo se harmoniza
Para que a Cidade tenha aquilo que precisa.
E veremos, então, a rua dos Palheiros
Bordada de chalets, jardinzinhos gaiteiros;
A rua do Mercado a ter outra feição;
Santa Luzia ter, no Inverno e no Verão,
O seu parque infantil (em vez de casinhotos)
A superar em graça o ócio dos minhotos...
— E depois, que dizer da nossa altiva Penha?
Já me vejo a comprar uma barata senha
Para o seu cabo-aéreo — um sonho oriental
Que trará mór fortuna ao meu torrão natal! —,
Voar ao cimo dum salto, em doida correria,
E assim poder gozar sãs visões de magia...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Não falarei do resto, aquilo que há-de vir,
Sabido que nem sempre adita ao meu sentir
Inconfidência tola ou exageros crassos
Que matem a ilusão que trago nos meus braços.
* * *
Senhoras, perdoai…. a minha pobre lira
Desfiro com brandura, e em ar de quem suspira,
Para cantar Amor — o velho Amor sublime
Que, vindo ao coração, a existência redime.
Não achareis poesia, oh, decerto que não.
Ao cântico que teço, em fervorosa unção,
A vossa formosura, encantos e pureza
De que rescende aroma em haustos de beleza.
Contudo, ele é sentido e vai bem afinado.
Devendo despertar um pouco do “cuidado”
Que Bernardim cantou em versos imortais
E que define Amor… e várias coisas mais.
Se aborrecido for, e mimo não tiver,
Desculpai-me o ousio: — melhor não sei fazer.
Ó gentil tricaninha e lindo amor-perfeito,
Em teres um riso aberto — és mesmo do meu jeito!
Queria possuir, amor de perdição,
A ternura que tens a mais no coração,
— Toma tento, porém! Há por aí silenos
De muito bom falar que, requestando Vénus,
Passam a sua vida a recontar seus males...
Foge deles depressa — e terás quanto vales!
... Meiguice e puro Amor, o afecto esfuziante,
Somente o encontrarás na alma do estudante!
O peito é livro aberto a transbordar de fé
Onde poderás ler: — És forma do meu pé,
— Neles não creias, não, ó meu Amor promete,
Outros Varrumas são como a pomada Rosete...
*
Rapazes, atenção!
A
musa de cansada
Requer a permissão de acabar com a maçada.
Dou-lhe toda a razão... é deixá-la partir,
Pois já tardou bastante e a noite vai subir!
Mas, antes de o fazer, é nossa obrigação.
Retribuir em favor a nossa gratidão.
Que o pulso seja firme a pegar na baqueta,
E a pancada certeira e das de estrela e beta!...
À voz do meu comando, erguidas bem nos ares,
Nos “bombos” uma cei e nas “caixas” aos pares.
Barulho e mais barulho, assim como é da praxe!
“Continência a Minerva!
Em
frente, Amigos... Marche!
L. Coelho
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