Na Citânia de Briteiros (fotografia de FranciscoMartins Sarmento) |
9 de Junho de 1877
A convite do dr. Francisco Martins de Gouveia Morais Sarmento, glória dos
vimaranense, visitam as ruínas da Citânia de Briteiros, de que ele era
explorador, os conferentes do 1º Congresso Arqueológico Português, que teve
lugar na Citânia, que representavam honrosamente as primeiras cidade do reino,
a saber: Marquês de Sousa Hölstein, Augusto Soromenho, Possidónio, Filipe
Simões, Aragão, Delgado, Luciano Cordeiro, Pereira Caldas, Fernando Castiço,
Simão Rodrigues e uma deputação composta do Visconde da Torre das Donas e
Câmara Leme, por parte da comissão exploradora das ruínas no monte de Santa
Luzia, em Viana do Castelo, representantes do “Diário da Manhã”, da “Democracia”,
do “Comércio do Porto”, do “Comércio Português” e da “Borboleta”. À noite
houve, em sua honra, no palacete do dr. Sarmento, ao Carmo, que estava
brilhantemente iluminado, um baile, que lhes foi oferecido em nome da cidade de
Guimarães, por uma comissão de distintos cavalheiros, a qual promoveu outros
festejos. Durante o baile tocaram em frente do palacete duas bandas de música.
No dia seguinte reuniram-se em conferência no mesmo palacete.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
II, p. 249)
Quando, em meados da década de 1870, Francisco Martins Sarmento iniciou a
exploração sistemática da Citânia de Briteiros, os resultados a que ia chegando
eram mais perguntas por responder do que as respostas que contribuíssem para
iluminar o conhecimento das gentes que, lá num passado remoto, ergueram e
habitaram aquele povoado. Dois anos depois, a 9 de Junho de 1877, por
iniciativa do Professor Pereira Caldas, mostrou as ruínas da Citânia a um
conjunto de eruditos portugueses e de representantes de vários jornais.
Os resultados científicos deste encontro de sábios não corresponderam
ao esperado. É certo que, se os seus ilustres convidados não foram de grande
serventia para o esclarecimento das questões de natureza científica que
inquietavam o arqueólogo vimaranense, a presença dos representantes da imprensa
revelar-se-ia extraordinariamente útil, por ter contribuído para chamar a
atenção da opinião pública e da comunidade científica para a importância dos
achados de Briteiros.
A conferência da Citânia de 1877 é um dos marcos históricos da afirmação
da arqueologia portuguesa. Em Guimarães, já havia a percepção da importância
daquele encontro científico, mesmo antes de se realizar, como o revelava o
texto do jornal Religião e Pátria em
que se anunciava a conferência:
A cidade, que foi berço da
monarquia, vai assim engastar na coroa das suas pristinas glórias mais o padrão
de iniciadora, no país, destes utilíssimos congressos, de que tantas vantagens
pode tirar a ciência.
Na conferência de 1877 seria proposta a criação de uma associação
científica para o desenvolvimento dos estudos arqueológicos, com sede em
Guimarães, mas de dimensão nacional, que se chamaria Associação Arqueológica
Martins Sarmento, que chegou a ter estatutos, mas que nunca se concretizou.
A reportagem do jornal Religião e
Pátria sobre este acontecimento ajuda-nos a perceber como era diferente o modo de receber daqueles tempos.
Os convidados de Sarmento foram recebidos em Briteiros com grande pompa, não faltando um arco festivo, um grupo de jovens vestidas de camponesas a
lançarem flores à comitiva, foguetes e até uma banda de música a tocar “hinos
nacionais”. Na Citânia, foi servido um lanche opulento, com menu escrito em
francês, como era de bom-tom naqueles tempos. Seguiram-se os brindes. O repórter,
depois de dar conta de quinze, escreveu que se proferiram “outros muitos que
por brevidade omitimos”.
À noite, já em Guimarães, a cidade ofereceu um baile aos ilustres
visitantes. Foi no palacete de Martins Sarmento e durou até depois das 5 horas
da manhã, e que o jornalista classificou “como uma daquelas festas que fazem
conceber e desculpar, por conseguinte, as fantásticas narrações das Mil e uma noites”.
Vale a pena perder alguns minutos a ler a reportagem do Religião e Pátria. Aqui fica:
A conferência da Citânia
Aturdidos ainda pelos esplendores da festa a que deu lugar conferência arqueológica
da Citânia, esse primeiro congresso dos estudiosos duma tão apreciável ciência
devido à iniciativa feliz e à patriótica vontade do nosso ilustre e benemérito conterrâneo,
o sr. dr. Martins Sarmento, mal podemos
lançar apenas os primeiros lineamentos da sua descrição, que penas mais hábeis
que a nossa farão decerto inteira e delineada em todas as suas singularíssimas
circunstâncias.
O que vai ler-se são apenas apontamentos muito rápidos e muito fugitivos
da festa mais esplêndida com que podia ser saudada num país já adiantado em civilização
a. Reunião duns poucos de homens num convívio literário de alta significação - o
estudo de umas importantes ruínas, e com ele a iniciação metódica dos estudos arqueológicos
nesse país.
Os sábios conferentes, que eram os exmos. srs. Marquês de Sousa e
Hölstein, Augusto Soromenho, Possidónio, Filipe Simões, Aragão, Delgado,
Luciano Cordeiro, Pereira Caldas, Fernanda Castiço, Simão Rodrigues e uma
deputação composta dos srs. visconde da Torre das Donas e Câmara Leme, por
parte da comissão exploradora das ruínas no monte de Santa Luzia. em Viana do
Castelo, esperados nas Taipas pelo sr.
Martins Sarmento, saíram dali com este e acompanhados por alguns cavalheiros,
entre os quais os representantes do Diário
da Manhã, da Democracia, do Comércio do Porto, do Comércio Português e da Borboleta, para o monte de S. Romão, onde são situadas as célebres
ruínas.
No princípio da encosta estava levantado um formoso arco de murta e
flores, e por trás dele, em dois estrades, grupos de camponesas, com os seus
trajes característicos, lançavam mãos cheias de flores por sobre os ilustres hóspedes
do sr. Sarmento, enquanto uma música tocava hinos nacionais, e os ecos das
montanhas eram acordados pelo estrondear de inúmeros foguetes.
A meia encosta, quando principiam as ruínas, começou a minuciosa visita e
exame delas, que se foi continuando até ao cimo do monte, onde, em barraca
apropriada, foi servida aos conferentes e demais cavalheiros um magnífico lunch, durante o qual tocou harmoniosas
peças , banda de música que tinha tocado na base do monte. Fizeram-se numerosos
e entusiásticos brindes, entre os quais mencionaremos o do sr. marquês de Sousa, outro do sr. Luciano
Cordeiro a Guimarães, do sr. Filipe
Simões a Guimarães e Braga, do sr. Vasco
Leão, em nome de Guimarães, agradecendo o brinde do Sr. Luciano Cordeiro, do sr.
marquês de Sousa à imprensa, do sr. visconde de Pindela em agradecimento ao sr.
Filipe Simões e brindando à imprensa, do sr. Magalhães Lima, agradecendo o
brinde feito à imprensa, do sr. Vicente Pindela ao Sr. Sarmento, do sr. Gervásio
Lobato agradecendo ao sr. Visconde de Pindela em nome imprensa, do sr. Adolfo Pimentel ao sr. Martins Sarmento, à
Sociedade de Geografia e a Luciano Cordeiro, do sr. Luciano Cordeiro ao sr. Possidónio, do sr. Pereira Caldas ao
desenvolvimento do Ateneu Arqueológico de Braga, do sr. Vicente Pindela aos
professores primários presentes, do sr. Gervásio Lobato ao sr. Alfredo Campos,
do sr. Magalhães Lima aos professores primários, do sr. Possidónio agradecendo
o brinde que lhe fora feito como presidente e instituidor da associação dos
arqueólogos e arquitectos, e outros muitos que por brevidade omitimos.
O lunch terminou às cinco horas
da tarde, e o seu menu foi o seguinte:
Bouillon de Volaille — Entrées — Du veau au aspic
— Lang au aspic — Jambon Westphalie — Mayonnaise d'homard — Volaille — Galantine
— Foie gras.
Rotis — Roast beef — Dindon — Canards au
eresson.
Entremets — Petits
patés au crême — Charlotte Russe — Puding — Gelée.
Fromage et fruits.
Vins — Xerez — Collares — Bordeaiu
— Champagne — Porto 1834 — Porto 1832.
Café et Liqueurs.
Depois do lunch continuaram as
investigações, já descendo a montanha e tomando de novo o caminho desta cidade,
onde os distintos arqueólogos chegaram por cerca das 8 e meia horas da noite.
Esperava-os à porta do Hotel uma banda de música, e, para tornar parte
nos brilhantes festejos preparados para receber tão ilustres hóspedes,
iluminaram-se grande parte das casas da cidade, e despovoou-se esta para o
largo do Carmo, onde a brilhantíssimas iluminações do palacete do sr. Sarmento,
as harmonias de duas bandas de música, os preparativos enfim dum sumptuosíssimo
baile, chamaram numerosíssima concorrência.
Este baile, que a cidade de Guimarães oferecia em honra dos seus ilustres
visitantes, e como que para saudar a aurora esplêndida duma nova época para a
ciência arqueológica, e para que uma deputação da grande comissão dele havia
ido às Taipas convidar os ilustres sábios, foi realmente o mais esplêndido e
brilhante que se pode imaginar.
O palacete do sr. Sarmento, um dos mais elegantes da província, os seus
jardins mágicos deslumbrantemente iluminados à veneziana, as vagas nuvens de
harmonia, o burburinho das conversações alegres, despretensiosas, felizes, as
toilletes mais apuradas e mais artísticas, as mais suaves belezas de Braga e de
Guimarães, as ondas de luz, o fulgor do ouro e dos brilhantes, o vaporoso das
rendas, o perfume gratíssimo das flores, tudo isto e o muito mais que ainda falta,
produziu o mais sublime, inebriante e fantástico resultado, e estamos certos de
que por largo tempo se há-de falar no baile do dia 9 em Guimarães, como uma
daquelas festas que fazem conceber e desculpar, por conseguinte, as fantásticas
narrações das Mil e uma noites.
Do serviço não falamos. Nunca o vimos tão profuso, tão variado, tão rico,
e sobretudo tão delicado.
Eram 5 horas da manhã, e ainda se dançava o cotillon, magistralmente dirigido pelo sr. Vicente Pindela, depois
de se haverem dançado 5 quadrilhas, 5 lanceiros, 2 valsas, 1 melange e 1
galope.
Foi assim que o berço da monarquia, o qual, pelo zelo e ardor dum seu
distintíssimo filho, teve nesse dia a subida glória de ser o local do primeiro
congresso arqueológico português, se honrou honrando os sábios que lhe vieram
dar lustre.
Foi assim que se iniciou neste país a obra gloriosa do estudo do passado
pela investigação dos seus monumentos.
A esta obra fica indelevelmente unido um nome. Francisco Martins
Sarmento, o audaz iniciador do estudo da história pela deletreação dos livros
de pedra soterrados uns, outros quase indecifráveis, é já agora um nome que
passará à posteridade como o de um sábio profundo, aureolado pelos esplendores
da ciência, e coroado pelo diadema da glória.
Religião e Pátria, Guimarães, 13 de Junho de 1877
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