Pregões a S. Nicolau (87): 1935

S. Nicolau

O pregão de 1935 foi escrito por Delfim de Guimarães, tendo sido pregoeiro o “nicolino-mor” Hélder Raul de Lemos Rocha.

O jornal O Comércio de Guimarães referiu-se assim a este número das festas de 1935:

O pregão, um número sempre chistoso, não o podemos apreciar.
Quando passou à nossa Redacção, de fugida, ia quase envolto em trevas.
E a letra, da autoria do mavioso poeta vimaranense o snr. Delfim Guimarães, também a não vimos nem ouvimos.
Dizem-nos,no entanto,que honra o seu autor.

Este pregão funciona como uma crónica em verso do ano que estava a terminar. Nele ressurgem umas personagens que o Delfim de Guimarães introduzira no pregão de 1908: as grisettes (do francês grisette, que significa algo como mulher jovem trabalhadora que é sedutora e provocante).


Bando Escolástico
Recitado em 5 de Dezembro de 1935
pelo quintanista
Hélder Raul de Lemos Rocha

Recordar é viver! É ter na própria mão,
Já frio, inda a sentir, um morto coraçdo!
É adorar a luz que a sombra entenebrece!
É a alma, na agonia, ajoelhada em prece!
Recordar é viver! Pois bem; a Mocidade
Vem hoje a recordar da VelhaAntiguidade,
Embora de fugida, apenas num segundo,
As Festas da alegria e do sentir profundo
Que neste burgo amado, ingentes, ecoaram
E a grei, de lés a lés, num sonho deslumbraram...

Da imensidão do céu, altivos de soberba,
Dominam Guimarães os olhos de Minerva
E fulgem, num clarão, às gerações-cretinas,
A sempiterna luz das Festas Nicolinas!

Ah! não! não morrerão as Festas deslumbrantes
Da mocidade em flor enquanto houver estudantes
Que vivam da beleza! Enquanto houver Poetas
Que cantem, com ternura, as nossas Capas Pretas!
Não morrerão jamais as Festas que o Pinheiro
Bem alto as anuncia, ao burgo, num terreiro!
Não morrerão jámais as Posses folgazãs,
O Magusto, o Pregão, a Entrega das Maçãs
Na ponta duma lança às Damas tão formosas!
E não, não morrerão as Danças graciosas!

Somos a mocidade e a Mocidade é a vida
Que estúa em vibrações de sol fecundador!
Deixa beijar-te o sol, ó nossa Festa querida,
Serás eterna, assim, e viverás de ainor!...
*
*      *
Um minuto vos peço, agora, de sossego!
Almas, ajoelhai! Silêncio! É o apego
Da reza, com fervor, por tantos que morreram,
Por todos que esta Festa, em vida, estremeceram!
Fecho os meus olhos, vejo, e tudo vejo exacto!
Na funda escuridão três rostos doloridos:
Padre Caldas, Sargenta e o bom Domingos Rato! —
Em volta, quantos mais! de mortos conhecidos!
Almas, ajoelhai! Silêncio! A prece os há-de,
A todos, suavizar da enorme saudade
De não poderem mais, mais uma vez ainda,
Compartilhar da Festa, a mais safldosa e linda!
*
*      *
Ó terra, ó nossa Mãe! Um ósculo de amor
Grande, cheio de luz, de extraordinários brilhos,
Recebe-o, é para ti, é um beijo de calor,
Que só às Mães os dão os lábios de seus filhos!
*
*      *
A Penha! a nossa Penha! A alma fica a olhá-la
Com seu olhar de alvura, olhar que fundo sente,
Que sentimos, no peito, a ânsia de abraçá-la
E trazê-la abraçada ao coração da gente!
*
*      *
Sabei que inda vigora o Estatuto velho,
Que veda a qualquer um meter nariz, bedelho,
Seja ele tamanqueiro ou seja surrador,
Caixeiro de setins ou seja mercador,
Na Festa a Nicolau... O Estatuto o diz:
“O que abusar irá, de tombo, ao chafariz!...”
*
*      *

Saiamos com audácia, a golpes de montante,
A batalhar, em campo, o monstro vil, gigante
Ciclópico, fatal, de tremebunda pata,
Que aos quatro ventos troa o chamadoiro Empata!...
Depois de ele vencido, inerte, esquartejado,
De todo aquele sebo à cova ter baixado,
Abatamos ao chão a espada da vingança,
Olhemos em redor, num golpe de esperança,
E veremos, ah! sim, o ressurgir da Terra
Em vagalhões de luz! E a luz que a vida encerra,
Há-de, por fim, beijá-la, em ânsias ardorosas,
Para que os tojais do mal se tornem iogo em rosas!

Os Paços do Concelho erguer-se-ão ufanos
E nunca, nunca mais, albergarão ciganos!...
Dir-se-á aos vilões ruins, de ideias apoucadas,
Que aquilo que ali esta, com fumos do passado,
Não se chama o Castelo, altivo dos Almadas,
Mas o castelo, sim, dum pobre desalmado!...
Ergucr-se-á um leatro autêntico, de lei,
Que o nome possa ter do nosso amado Rei,
E não seja preciso — ó praga horrenda, ó praga!!...
O povo recorrer ali... a Fafe ou... Braga!!...
Tratar-se-á de pôr o Largo S. Francisco,
Exposição, há muito, em ervas ruins e cisco.
Num largo bem decente, airoso, ajardinado,
Que se imponha ao lugar onde há um templo sagrado!...
Dar-se-ão jorros de luz às duas Avenidas
Em treva, há muito já, contritas, recolhidas!...
Dir-se-á ao povo ignaro: aquilo não tem rabo
Embora chifres tenha, assim, na realidade...
Aquilo que ali se ergue não é nem foi diabo!...
Das campinas em flor é Pan, é divindade
Far-se-á que a Estação, fronteira ao Cavalinho,
Pela madrasta seja alisada com carinho,
É depois de vestida, e limpa toda ela,
Possa tratar por mana a sécia de Vizela!
Far-se-á com que o Comércio e Indústria, de mãos dadas,
Venham da sua inércia ao fogo Actividade
E saibam reviver as chamas apagadas
Da Marcha Milanesa e Festas da Cidade!...

Aos sujos matulões, de falas crapulosas,
Impor-se-ão as leis severas, rigorosas,
Forçando-se a saber 0 que é Educação
A beijos de chanfalho e mimos de prisão!.,.
Num tour de force ir-se-á, embora cortesmente,
Até junto do Bom-senso, a ver se, novamente,
Voltam a nós, em breve, ou inda se demoram,
Os anos do Liceu que há anos se nos foram!...
Ver-se-á inda o maior e belo ajuntamento
Fremente de ovações e palmas a granel;
— Na vanguarda os clarins, guiando o Regimento
De Infantaria 20, a entrar tio seu Quartel!...
Dar-se-ão à Avenida as pílulas finais
Que do Proposto a cure ao fundo doa Pombais!...
Impor-se-á decência às ruas da cidade!...
Que cada um que tenha a sua necessidade
A guarde para lugar mais próprio... na casinha!...
Aquelas que a cantar pregoam a vivinha,
O façam no Mercado, ali, à boca cheia,
Que a Praça nunca foi em frente à Assembleia!...
Vedar-se-á, também, que a Praça do Mercado
De coradoiro sirva a trapo ensaboado!...
Saldar-se-ão, alfim, as dívidas morais
Há anos por saldar: dois altos pedestais
De mármore brunido, ao sol resplandecente,
Mortos da Guerra, em um! Em outro, Gil Vicente!
*
*      *
Nem tudo é joio, não, há trigo e do melhor:
Saúdemos, bem da alma, o nobre Vereador
Que quer tirar do ventre enorme da montanha
A água que nos falta, e que há-de ser tamanha,
Que a um incêndio, igual àquele dos Palheiros,
O extinguirão, de pronto, as bombas dos bombeiros!...

Os nossos parabéns aos lídimos fiscais
Que aqui, onde correu a fraude à rebatinha,
Fizeram com que o pão — ó vós que o amassais! —
Não seja de serrim, mas seja de farinha!...
*
*      *
Escutai, escutai: é grand-guignol do são!...
Quem está ai, quem é?...
Tenho medo de mim!... 0 medo, na Quintão,
Compra-se a dez tostões,
Sem medo de papões!...
Haja calma, Jé, Jé!...
*
*      *
Agora, coisa grande: ali, no Oriental,
Com mossa ao ocidente, aos sábios e... sabões,
Nós temos, afinal,
Da grande Sociedade os sábios das Nações!!...
*
*      *
Correm zuns-zuns, para aí, duns velhos e meninos,
(O vício não se extingue!...)
Que aos regalos se dão, regalos superfinos,
No Club Ping-King!...
*
*      *

Ó grisettes gentis, marotas, que vos ralho!...
Pois não fazeis serão?!... Adeus, horas felizes!...
É lei! e nessa lei das oito de trabalho
Há uns senhores fiscais que afilam os narizes!...
*
*      *

Tricaninhas, porque é, ó frescas tricaninhas,
Que calçais, de Viana, as lindas chinelinhas,
E não traçais no peito um lenço de cambraia?!...
Porque é que não vestis, de crepe, aquela saia
Com barras de veludo e ramalhudos folhos,
Que faziam bailar, na roda, os nossos olhos?!...
Tudo se foi, fugiu!... A moda é uma gazela!...
Quem foi que vos furtou o gosto, a bizarria,
O requebro da anca, o tic, a harmonia?!
Ora, quem foi!... Foi ela!...
Quem foi que esfarrapou, à vossa teia, a ourela?!...
Foi ela, só, foi ela!...
*
*      *

Se foram da serpente os olhos coruscantes
Que obrigaram Mãe Eva o Pomo do Pecado
A dar ao Pai Adão, com modos fascinantes,
Embora ele ficasse assim... como engasgado...
Nossos olhos serão os olhos de serpentes,
Que as lanças levarão, erguidas, rendilhadas,
A dar-vos as maçãs, vermelhas, reluzentes,
Para que por nós fiqueis, Senhoras, entaladas...
Senhoras, um sorriso! apenas um sorriso,
Que nós queremos ver na terra o Paraíso!...
*
*      *

Eh! lá, rapaziada!!... Então, isso que é?!...
Pois vós sois, de verdade, extáticos, de pé
Como espectros de gelo, e mudos como tumbas?
Vamos!... É aprontar, com garbo, esses zabumbas,
Vossas caixas de rufo, à cinta, e a tambores!...
Um ribombo infernal troveje em mil furores.
Que, num assombro, deixe, estarrecidos, cegos.
Mussolini na Itália e na Etiópia o Négus!!...
Dezembro de 1935.
Delfim de Guimarães.


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