Efeméride do dia: Tragédia e heroísmo no Toural em chamas

O topo do Toural  do lado do Norte, reconstruído depois do incêndio de 1869

4 de Junho de 1869

Sexta-feira, Coração de Jesus.- Pavoroso incêndio, pelas 2 horas da madrugada, que reduziu todas as casas do lado norte do Toural, excepto a da esquina poente por ser construção moderna e de pedra, dando a morte a 4 homens (a opinião do povo miúdo foi de que desapareceram alguns carpinteiros, dos lados da Senhora do Porto, que trabalhavam nesta cidade, e por isso maior o número dos mortos) e ferimentos a centenares, por causa duma explosão de pólvora, gás, etc., do armazém de molhados, materiais inflamáveis e refinação de açúcar, pertencente ao negociante João José de Sousa Aguiar, onde pegara o incêndio.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 233)

O incêndio que destruiu o topo do Toural do lado do Norte na noite de 3 para 4 de Junho de 1869 ficou registado como um dos mais terríveis desastres de que há memória em Guimarães. Daquele lado da praça, apenas se salvou um edifício, o das esquina com a actual rua de Paio Galvão, que era em pedra e de construção recente. Os números das vítimas nunca foram apurados ao certo, sabendo-se que houve, pelo menos, quatro mortos e 120 feridos. Aquela noite trágica ficou também marcada pelos actos de heroísmo, de generosidade e de abnegação dos que combateram o incêndio e acorreram em socorro às vítimas.
O jornal O Vimaranense, na sua edição do dia 11 daquele mês fatídico, ocupa boa parte das suas páginas com um impressionante relato dos acontecimentos, que vale a pena ser lido. Aqui fica:

O Incêndio do dia 4
Tendo nós dado um suplemento com a notícia por alto do pavoroso incêndio, que teve lugar nesta cidade na manhã do dia 4, vamos agora fazer mais clara narração deste triste sucesso, que é cheio de episódios, cada qual mais admirável e mais triste.
O incêndio, como já indicamos, pronunciou-se na fachada setentrional da praça do Toural, numa casa, onde conjuntamente com uma fábrica de refinação tinha o negociante da mercearia desta praça, João de Sousa Aguiar, um armazém de molhados a depósito de materiais inflamáveis!
Esta última parte, porém, era mal sabida do público, e aos primeiros sinais do sinistro apareceu logo a companhia dos incêndios, parte do destacamento do 14 e outras pessoas que obedecendo aos impulsos do coração correram a valer à desgraça de um seu compatrício. No número destes contam-se todos aqueles quem a morte, por misericórdia de Deus, veio pôr termo aos horríveis padecimentos!
O incêndio, tendo principiado na fábrica de refinação, que estava na loja que dizia para o quintal da casa, foi alimentando as suas lavaredas no açúcar, lenha e outros combustíveis, até que rompendo com ímpeto ao tecto da casa, manifestou a sua força e direcção. Era impossível atalhá-lo já na sua origem e restava o expediente de lhe embaraçar progresso destruidor, cortando-o pelos lados e repelindo-o de frente.
Alguns corajosos artistas subiram logo com inaudita coragem, e rompendo quase por entre chamas, estavam executando este plano, ao mesmo tempo que o intrépido e infeliz Avelino Barreira, hábil mestre pintor e estucador, tendo subido por uma escada lançada à frente da casa, se colocou no ultimo degrau, ora dirigindo os que mais longe trabalhavam, ora guiando ele próprio a manga da bomba grande, para impedir a marcha impetuosa das chamas, que tinham agora por foco um depósito do palha, vizinho da mesma casa.
Tinha-se passado uma hora neste denodado esforço, parecendo que o elemento devorador se deixava afinal vencer; mas como que traiçoeiramente havia-se passado por uma parede de tabique para o interior da frente do segundo andar, onde o espírito das trevas, que se regozija com o martírio dos homens, conservava ainda uma caixa cheia de pólvora no peso de 8 arrobas!
Nesta ocasião o concurso da gente tinha-se animado. Dezenas de pessoas formavam linha de resistência contra o fogo sobre os telhados vizinhos, outros muitos trabalhavam por diversos modos, estes salvando móveis, aqueles conduzindo água para as bombas, e centenares de espectadores olhavam da perto a ocasião de serem precisos os seus esforços. — Neste momento uma voz desmaiada pergunta se o incêndio lavrava no segundo andar, e num tom que apenas foi ouvido dos que o escutavam perto, avisa de que há pólvora! Eis o momento fatal! — Como se a cratera de um vulcão se tivesse aberto com todos os seus horrores de desolação e espanto, a explosão rompe atroadora e medonha, de sorte que os que não ficaram confusos nem feridos, entreveceram-se-lhes os membros e caíram por terra! — O infeliz Avelino, que ainda se achava no cimo da escada, foi visto por quem estava de longe, voar por entre fumo e fogo, vindo cair do alto, ainda apegado à escada, no centro da praça do Toural a 50 metros de distância, vivo ainda, mas lastimosamente fracturado e queimado nas ânsias da morte!
Outros desgraçados, sofrendo o mesmo impulso foram cair a grande distância sobre telhados vizinhos, e os mais infelizes, na queda baixaram sobre as labaredas dentro do foco do incêndio!
Por algum tempo um vago rumor de espanto e consternação respondeu ao medonho espectáculo, destinguindo-se depois o gritar dos feridos e o gemer dos moribundos.
Os sinos e as cornetas militares redobraram os sinais de socorro.
Com admirável intrepidez e coragem romperam alguns, quase calcando fogo, para arrancarem de dentro do incêndio, tornado agora terrível, os infelizes que lutavam com a morte. Entre estes distinguiram-se José da Silva digno empregado da administração deste concelho, e José Martins da Costa, proprietário, Jerónimo Peixoto, empregado da fazenda.
Toda a gente que vencendo o terror se dispôs a trabalhar dividiu-se em duas secções — a primeira e a maior, debaixo da direcção do administrador do concelho e do fiscal da câmara, tratou de atalhar ao incêndio,que tomando enormes proporções, ameaçava por todos os lados uma marcha rápida e destruidora. — Outros, atraídos pela dor, tratavam de consolar aos infelizes padecentes. Foi então que se deram exemplos de sublime e edificante dedicação.
A casa do nosso amigo José Joaquim da Costa, inteligente e activo director do café na mesma praça do Toural, converteu-se por algum tempo num verdadeiro hospital de sangue. Para ali eram arrumados provisoriamente os moribundos e feridos, que chegavam de todos os lados e dentre o brasido do incêndio. Alguns sacerdotes apareceram logo,confortando os feridos e absolvendo os agonizantes. Entre outros lembra-nos de ver o sr. reitor de Vila Cova da Lixa e o reverendo João Gomes dos Santos Portela.
Animado de heróica coragem, mal livre do horror da catástrofe, de que milagrosamente escapara o nosso amigo medico cirúrgico Avelino Germano, foi quem primeiro ministrou socorro aos feridos, recebendo nos braços alguns ainda fumegantes, como nós mesmos presenciamos.
Instantes depois apareceram também os hábeis facultativos srs. Miranda e Teixeira de Queirós.
Não há palavras com que possa tecer-se um digno elogio ao fervor caritativo, à incansável diligência e à serena abnegação com que estes facultativos trabalharam incessantemente, desde as 2 horas e meia da noite até às 11 da manhã, hora em que ainda nem todos os feridos estavam socorridos e curados! Hoje contam-se até 120 as pessoas que ficaram mais ou menos gravemente feridas e contusas!
Almas caridosas e extremamente dedicadas trataram logo de conduzir em macas aos hospitais das duas ordens domínica e franciscana os lastimáveis padecentes, e nunca a consciência se deixe de iluminar com a lembrança de tantos benefícios aos que, como o exm.º sr. José Martins Minotes e o ilm.° sr. José Joaquim da Costa, tanto se esmeraram em dar alívio e pôr a abrigo os enfermos. Ambos estes beneméritos cidadãos foram vistos, ansiados de fadiga, conduzindo macas e levando até nos braços os mais feridos e queimados!
Os digníssimos mesários da ordem domínica e nomeadamente o sr. Gaspar Lobo, prior da ordem, o sr. Freitas Carneiro, mestre de noviços e contador da comarca, o sr. Gomes de Azevedo, síndico da ordem e recebedor do concelho, apareceram logo, prontos para todo o trabalho, servindo de enfermeiros e praticando actos da mais fervorosa caridade. — O mesmo se praticou no hospital de S. Francisco e todos os empregados destes piedosos estabelecimentos se viram animados da mais acrisolada e incansável diligencia. Honra e louvor a todos.
No hospital de S. Francisco deram entrada 6 doentes, 3 dos quais em perigo de vida. No de S. Domingos, como ficava mais perto, deram entrada perto de 17, quase todos grave e perigosamente feridos! Aqui o quadro de lástima penetrava condoía o coração mais feroz. Basta dizer que alguns dos desgraçados sucumbiram à violência das dores!
Mas no entretanto que estas cenas se passavam, outros arriscavam de novo a vida, praticando actos de heroísmo para atalharem ao incêndio e valerem a novas vítimas.
Não podemos deixar de mencionar em primeiro lugar o corajoso Manuel Doceiro que deu na admiração de todos os que por várias vezes o viram com heróico sangue frio, arriscar a vida nos lugares onde o fogo crepitava mais enraivecido. Sempre nas cumieiras dos telhados, nos pontos de maior risco se ouvia a voz animadora deste filho do povo, indicando e pedindo auxílios!
Manuel Ferreira de Abreu e José Mendes Ribeiro, comandante da companhia dos incêndios mesmo depois de receber duas feridas António M. Ribeiro, Jerónimo S. Carlos e outros cujos nomes não pudemos ainda averiguar são dignos de especial menção. O sr. administrador do concelho era o primeiro a abrir o exemplo, acudindo a toda a parte, sem temor do perigo, nem amor à própria conservação.
Eram 4 horas da tarde e ainda esta autoridade, apesar de ter recebido uma contusão numa das pernas, não tinha desamparado o seu posto.
Para o brioso destacamento que faz a guarnição desta cidade, também é pouco todo o elogio e especialmente para o seu valente e corajoso comandante. — 0 destacamento, que acudiu todo em número de 150 praças, dividiu-se em dois turnos. Um deles, armado, formando um cordão de segurança ao largo de toda a praça, deu também sentinelas para os pontos mais arriscados; outro foi mandado desarmar pelo comandante e junto com os bombeiros, foram todos dignos da atenção e louvor públicos. Eram 7 horas da manhã e ainda estes bravos, ofegantes de calor e fadiga eram vistos nos lanços mais trabalhosos e aturados!
Por virtude de tanta dedicação e de tamanhos esforços, às 11 horas da manhã, estava o incêndio completamente vencido, voltando toda a atenção para o conduzimento das infelizes vítimas, que felizmente estão entregues à provada caridade dos habitantes de Guimarães.
A subscrição, iniciada pelas duas redacções desta cidade, monta já a 800$000 réis.

Honra aos heróis
Guimarães, torrão fértil de homens dedicados pelo amor do próximo, como o tem provado mil vezes, não deverá jamais esquecer aqueles que atiraram com a vida ao meio das chamas para salvar as vidas e as fazendas estranhas.
Esquecê-los seria chamar a si o labéu da ingratidão, que de nenhum modo se casa com a boa índole deste bom povo.
Nós, filhos quase fanáticos pelo bem da mãe pátria muito concorreremos para e saldo desta divida grande e sagrada, dando a conhecer aos dois mundos os nomes dos heróis, que mais se distinguiram na catástrofe do dia 4.
Fomos escrupulosos na investigação dos serviços prestados por cada um; contudo num tão grande número de homens, que se sacrificaram, não admira, que alguns nos escapassem.
Aqui vão pois consignados aqueles que mais dignos julgamos da nossa veneração e respeito.
Administrador do Concelho
António Joaquim de Sousa.
António José Fernandes Guimarães
Ana Rita — Rua Nova
Anastácia da Silva
António Mendes Ribeiro
António de Freitas Carneiro
Adolfo Artur da S. Leite
Bento — lavador
Bento — sapateiro
Corpo de Bombeiros
Destacamento do n.° 14 de infantaria
Domingos José Ribeiro
Diogo Neves
D. Jerónimo Romão Soromenho
D. Martinho Romão Soromenho
Francisco de Carvalho
Francisco, Casa Velha — Lameiras
Henrique — marceneiro
Inácio Doloripes Afonso Barbosa
José Ribeiro Minau
José Maria de Oliveira Cardoso
José Luís Ramos
José Joaquim Gomes da Silva
José António— latoeiro
Jose António Ferreira
José Vaz — carpinteiro
José Ferreira de Abreu
José Joaquim da Costa
José das Leiras
José Augusto César de Novais
José da Silva Basto
Jose Martins da Costa
José — vendeiro
José Correia — barbeiro
Jose Fernandes — cantoneiro
João António Fernandes Guimarães
Joaquim de Azevedo Machado, caixeiro
Jerónimo Peixoto de Abreu Vieira
Júlio Pinto Monteiro Girão
Luís — serralheiro e oficial
Luísa Maria — viúva
Manuel Freire de Andrade
Manuel Vaz — carpinteiro
Maria Maximina da Conceição — Rua Nova.
Avelino Germano da Costa e Freitas.
Manuel Lardeira — caiador
Padre António Ferreira de Abreu
Rosa Benedita
Rosa — criada do snr. J. P. M. Girão
Manuel — oficial do snr. Jerónimo — carpinteiro

A propósito do incêndio
É custoso, quando para lembrar deveres, que deixam de cumprir-se, se tem de recorrer a factos que nos apertam o coração.
Vamos falar da cena deplorável, que teve lugar no sempre memorável dia 4 de Junho.
Não nos ocuparemos da causa do incêndio, porque dessa apenas presunções; ocupar-nos-emos sim do que remotamente deu causa às vítimas que hoje gemem aflitas nas enxergas dos hospitais e às que lá da eternidade estão vendo o martírio das esposas, as lágrimas dos filhinhos e a saudade dos parentes e amigos.
Se não fora a existência duma porção de pólvora no local do incêndio, decerto não teríamos hoje uma só desgraça a deplorar.
E perguntamos: não será proibido por lei haver depósitos de matérias inflamáveis e muito especialmente de pólvora no centro das povoações? É. Então porque se não fez cumprir a lei?
Sabemos que o sr. Sousa Aguiar muitas vezes tinha sido intimado e ainda há pouco o foi a pedido, segundo nos consta, de alguns vizinhos, que já previam alguma catástrofe, mas osr. Sousa Aguiar não fez caso da intimação e continuou a reforçar o seu armazém, acrescendo a gravíssima circunstância de torrar café e refinar açúcar no mesmo lugar do depósito.
Porque deixaram pois as autoridades enganar-se deste modo, confiando demasiadamente no sr. Sousa Aguiar, e esquecendo as denúncias, que tão repetidas vezes lhes foram feitas?
Não achamos desculpa para semelhante desleixo.
Demais no acto do incêndio que durou ainda uma hora antes da explosão, porque não preveniu o dono do armazém as pessoas que acudiram ao fogo? Porque seria?... Calemos-nos, que é o melhor.
O que pedimos agora é que as autoridades sejam rigorosas no cumprimento dos seus deveres.
O sr. Sousa Aguiar, rebelde ao cumprimento da lei, tornou-se causa imediata de todas as perdas e danos, ocasionados pela explosão.

As leis não se fizeram só para ler-se, foi única e exclusivamente para cumprir-se a bem da utilidade pública, que é essa que nós defendemos.

Comentar

0 Comentários