S. Nicolau |
O Bando Escolástico de 1933 foi escrito por
Delfim Guimarães, tendo sido lido pelo estudante do 5.º ano do Liceu António de
Melo Coutinho. As primeiras estrofes são compostas por versos de saudade, em
que se evocam figuras que se salientaram nas festas de S. Nicolau do passado.
Na segunda parte, fala-se dos melhoramentos de Guimarães, os que foram
feitos e os que estavam por fazer, terminando a pedir mais cuidado com o asseio
e a frequência da “sala de visitas” da cidade, o Toural,
Onde Afonso
Primeiro ergue bem alto a Espada...
Mostrai à gente ignara, inútil,
despeitada,
Que a gente desta Terra é gente dum só rosto
E sabe honrar a grei, altiva, no seu
posto...
Termina com as
referências tradicionais às tricaninhas,
às costureirinhas, às damas, aos caixeiros.
O fecho faz-se
com o apelo do costume: que se façam ouvir as caixas e os bombos:
Que trema a Sociedade austera das
Nações!...
Pera frente e sem pavor!... Rugi, uivai,
canhões!...
BANDO ESCOLÁSTICO
Recitado em 5 de Dezembro
de 1933
pelo quintanista
António de Melo Coutinho
Abriu-se na Amplidão a nuvem da Saudade!
Palas, a bela Deusa, afaga em claridade
E em beijos de ternura a face a Nicolau!
Desce até nós um som de místico solau
E as almas nos transporta à Região Sidéria.
Silêncio! Olhai em Luz o que já foi
Matéria...
Polinia estende as mãos e os mirtos da
Grandeza
Espalha, sorridente, em frontes de beleza:
— Bráulio Caldas, ao centro! Aos lados,
João de Meira,
Padre Gaspar Roriz e o triste Arnaldo
Pereira! —
Os velhos Professores lá são em grupo
austero:
— Cónegos Zé-Maria, o rígido Touqueiro,
Miranda, Bacelar e Sanches e Moreira! —
Os Mestres e a Poesia! A arte verdadeira!
Bem perto, é a alegria em risos estuantes!
Olhai-os, um a um, os velhos estudantes:
— O Campos, no zabumba, ardente
como um tiro,
Carlos Abreu, o Pádua, o Álvaro Casimiro!
—
O Álvaro! Que saudade! As suas gargalhadas
Enchiam toda a Festa! Eram como alvoradas
Em vibrações de amor, em explosões de sol!
Seu riso, hoje é no Céu a luz dum arrebol!
Cá em baixo, sobre a Terra, um vivo:
contemplai-o!
Anda como o Rei-Lear, o pálido Sampaio,
A gritar sua Dor de tanta ingratidão...
É que ele foi o sangue, o próprio coração
Da Festa Nicolina e a Mocidade de hoje
Quase que o olvidou, da sua sombra
foge...
Capas pretas, voai, erguei-vos, capas
pretas!
Ó Mocidade em flor de Artistas e Poetas:
Trazei-o junto a vós, ao vosso peito
uni-o!
Rapazes: aquecei um Coração com frio!
Já velho, ele é o eterno e jovem namorado
Desta Festa de Amor — Relíquia do Passado!
*
* *
Eis no cimo o Castelo, a heróica
fortaleza,
Fronte de Guimarães vincada de nobreza!
Ó nossa Mãe velhinha: o vinte o filho amado?...
Ai! pobre de quem tem má sina e triste
fado!...
Que mais querem de ti?!... Que vento mau,
de insânia,
Te regelou, ó Mãe da velha Lusitânia?!...
Letrada, para quê?!... Porque é que te apagaram
Dois anos de Liceu?!... — É triste, ó
Mocidade!... —
(E os Galos-Celtas já há séculos te
chamaram
Araduca, que diz: — das Letras a
Cidade!!...)
Letrada, para quê?!... se a ignorância, às
vezes,
É aquela que dá... sorte a tantos
portugueses!...
Mas deixemos a dor, a dor que te crucia
E prossigamos, pois, na ronda da ironia...
Eh, pai!... Tanto café!... Num largo...
três ou quatro!...
É que o café dá mais... que a peste
dum teatro...
Há ao longe rumor!... Rumor!... Quem o
provoca?
— Aquilo é uma defesa, a tempo, do
Ricoca...
Ó eixo-ribaldeixo, o teu rival
desporto,
Pregou-te um pontapé e afocinhou-te... És
morto!...
Louçã, entoucadinha, a Praça do Mercado
Com a nova Avenida, assim, de braço dado,
Mostram-se em lindo par e ainda em
construção...
Merece a Câmara de hoje um xi do
coração...
Melpomene um profeta, há tempos,
consultou
Para aliviar horrores... Vai ele, a
exorcismou...
Nosso teatro, então, numa ânsia
desesperada,
Tremeu, tremeu, tremeu, e... só tremeu!...
Mais nada!... Morreu numa prisão, às mãos
dum furioso,
O Bate-Folhas pobre, ingénuo e... palavroso...
(Foi como que encerrar um tímido cordeiro
Na jaula duma hiena ou lobo
carniceiro!...)
Quando é que a Direcção da surda
Companhia
Dos Caminhos-de-Ferro arranjará dinheiro
Para a Cara esfregar, dar vida e
alegria,
Lá cima, ao inestético e sujo...
pardieiro?!...
A grande moda de hoje é o caco
em liberdade,
Mostrando a cabeleira emaranhada ou lisa...
Não chegará a andar, inteira a humanidade
Pelas ruas descalça e apenas... de
camisa?!...
Um monumento impõe-se, aqui, na nossa
Terra Aos Mortos e Heróis da monstruosa
Guerra...
António de Azevedo, Artista, sem
espavento,
Fez latejar em bronze a Alma de Sarmento!
Teixeira Lopes, Mestre insigne, num
arranco
De Génio eternizou, num busto, João
Franco!
Ah! não vos esqueçais de, carinhosamente,
Levantardes Memória ao Grande Gil Vicente!
Vós que o mando exerceis, Autoridades
gradas,
Reprimi duramente as línguas
desbragadas...
Retirai do Toural, humanas, sem acintes,
A triste aluvião de esquálidos pedintes...
Não deixeis perfumar de essências
esquisitas,
Com vivinha
da Póvoa, a sala de visitas
Onde Afonso
Primeiro ergue bem alto a Espada...
Mostrai à gente ignara, inútil,
despeitada,
Que a gente desta Terra é gente dum só rosto
E sabe honrar a grei, altiva, no seu
posto...
*
* *
Minha Penha adorada: és linda e sem
igual!!
A doce encarnação do Sonho em Portugal!!
Cada rocha, em teu dorso, é pedra estranha
e muda
Que extática contempla a Natureza ruda
E a Mão que faz girar os Astros e o
Universo!!
Minha lira não tem o som harmónio e terso
Para te poder cantar, ó Penha sem igual,
Ó doce encarnação do Sonho em Portugal!!
Eu sou um menestrel sem tuba e sem... monóculo...
Minha pobreza fita, assim, com teu binóculo...
*
* *
Tricanas que a cantar passais a vida
inteira
Em frente dos teares, na enorme
barulheira,
A ânsia do Trabalho — o pão de cada dia! —
Porque é que tendes sempre um riso de
alegria,
Tão diferentes sois das outras raparigas
E adormeceis a dor num sonho de
cantigas?!...
Ó tricanas gracis, ó frescas tricaninhas,
Que aos estudantes sois esquivas e
ingratas:
Calçai os vossos pés com lindas
chinelinhas
E deitai à valeta as feias alpargatas...
Cantai, cantai que a vida, assim cantada,
a eito,
Passa sem se sentir e faz... arfar o
peito!...
*
* *
Costureirinhas vinde às nossas capas rotas
Com vossas mãos de neve e dedos de garotas
Dar pontos de retrós... Contar-vos-emos
contos
Dum tal senhor vigário em paga
desses pontos...
Sempre zuque que zuque a agulha a
pespontar,
Sempre zuque que zuque a máquina a
girar,
E nós aqui à espera, as capas tão
rotinhas,
Duns pontos de união das vossas doces...
linhas...
Pestanas de cetim que chorais tanto e
tanto:
O vestido da noiva, ai! quando estará
pronto?!...
Ó olhos de veludo e amargurado pranto,
Que tão pouco auferis por tanto e tanto
ponto:
Nós hemos-vos temperar, num fogo
original,
Co' bico duma agulha o... aço do dedal...
*
* *
Caixeiros do bom-tom, ó loiros papo-secos,
Nosso balcão não tem riscados-parramecos
E não podeis meter, aqui, vosso nariz...
— É que no Carmo existe, ainda, o
chafariz... —
Da Marcha da Ilusão vós sois os
criadores!
A nossa Marcha é outra: é a Marcha dos
tambores,
Que a cada um de nós rouqueja o seu
lugar...
Misturas... vá de retro... Assim
não há azar...
*
* *
Trabalhadores do campo e grandes oficinas:
Saúdam-vos, com crença, as capas e as
batinas.
De vós, Comércio e Indústria, a Academia
quer
Mais sangue e mais fulgor na Festa
a São Gualter,
Fazendo realçar a vida a Guimarães!
Assim, tereis ensejo aos nossos parabéns.
*
* *
Senhoras, escutai:
Ao
ver-vos como as Santas
Da igreja do Luar (e de esbeltezas tantas
Com que Deus vos formou!) sinto a
descrença atroz
De viverem no Céu Santinhas como vós!
Sonhos da nossa vida alada e descuidada,
Beijos da nossa boca ardente e enamorada!
Violetas de sonho e ósculos de rosas,
Santas da nossa Terra, ó Santas tão
formosas:
Num êxtase vos olho e sinto, após, desejos
Da vista transformar em biliões de beijos!
Senhoras, perdoai! A Mocidade é louca!
É isto que estais vendo: o coração na
boca!...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Senhoras:
As
maçãs loirinhas e rosadas,
— Doces pomos de Amor, de Graça e vivo
Enleio —
Com vossas mãos de neve, esguias,
perfumadas,
Da lança as retirai... guardai-as junto ao
seio!
*
* *
Rapaziada, alerta!... Em punho as
maçanetas!.. *
As peças assestai, que isto não vai com
tretas!...
Nesta luta mostrai que, sem infantaria,
Assim vos transformais em forte
artilharia!...
A Cidade arrasai com balas de zé-pereira,
O Cano, o Benlhevai, a Pisca, a
Feijoeira!...
Que trema a Sociedade austera das
Nações!...
Pera frente e sem pavor!... Rugi, uivai,
canhões!...
Dezembro de 1933.
DELFIM DE GUIMARÃES
(VIMARANES).
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