Efeméride do dia: O "Nove Horas" não foi na "Cozinha de Ferro"

O carro funerário municipal que o povo baptizou de cozinha de ferro.

2 de Junho de 1879
A Associação Artística reuniu em assembleia geral, a requerimento de dez sócios, e votou por unanimidade que a assembleia, lamentando o modo apaixonado e irritante com que a mesa da Ordem Terceira de S. Domingos tratava de perseguir aqueles dos artistas seus sócios que, por um generoso impulso de dedicação fraternal, e circunscritos aos meios da mais conciliadora prudência quiseram prestar, como prestaram, o preito da última homenagem ao cadáver do seu filho falecido, confrade Francisco Ribeiro Dias, "o 9 Horas", resolvia tomar como feitas a si, aquelas acusações e perseguições, prestar aos sócios acusados toda a protecção e auxílio de que eles careçam e tomar a seu cargo toda a despesa que fosse necessário fazer-se no prosseguimento desta questão.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 227 v.)

O relato dos incidentes ocorridos no funeral de Francisco Ribeiro Dias, a que se refere esta efeméride anotada por João Lopes de Faria, foi notícia no jornal Imparcial publicado no dia seguinte:

Nove horas
Hora crepuscular, em que os bons burgueses rezam e dormem, refazendo-se de suas forças para no dia imediato aplicá-las ao trabalho quotidiano, “reclamando à terra em frutos o que dá em suores”.
Nove horas.
Um pobre artista desta cidade, nascera às 9 horas do nono mês de um ano que acaba em nove.
Em cada ano, o infeliz festejava, como podia, aquele dia nove às 9 horas, e também por essa coincidência, ou por qualquer outra razão que nos é estranha, passou a alcunhar-se o “Nove horas”.
De sorte que, quando o modesto artista passava por qualquer rua da cidade, embora o Sol tocasse o seu zénite ou já do poente lançasse os últimos raios, dizia-se sempre – “Nove horas!”
Falece, enfim, “Nove horas”, supõe-se não mais de falar nessa hora, senão uma vez ao dia e outra à noite. Ontem (seriam nove horas), quando o cadáver de “Nove horas” se ia dar à sepultura, eis que um conflito, que ia tendo sérias consequências, interrompe a última jornada de “Nove horas”.
A causa, segundo nos informaram, foi a seguinte;
Sendo “Nove horas” irmão da Ordem Dominica, e assentando esta corporação entregar os seus irmãos falecidos pobres ao carro da Câmara, à porta do templo, uma corporação civil a que o finado pertencia – mais humanitária, ou porque os estatutos assim o determinam, aí se apresentou, querendo acompanhá-lo à sua última morada.
A Ordem opôs-se e, metendo o cadáver no carro, ordenara ao cocheiro que fustigasse os animais.
Os membros dessa associação detêm-nos e intimam o cocheiro a apear-se. Este obedece e a associação (a Artística), apossando-se do cadáver, tendo antecipadamente convidado o respectivo pároco, conduziu-o com a maior decência e respeito ao cemitério.
O tumulto era tal e o acompanhamento do povo (todo afecto às intenções da associação) em tão grande número que, passando nessa ocasião a procissão do Ladário, teve de retroceder pela Travessa de S. Domingos para seguir o seu piedoso itinerário, acompanhando a maior parte do povo o fúnebre préstito até ao cemitério.
Muitos têm sido os comentários deste conflito; nós, porém, limitamos-nos a narrá-lo como no-lo informam, chamando para ele a atenção das autoridades e corporações religiosas, a fim de providenciarem de modo a que nãos e reproduzam semelhantes cenas.
Imparcial, Guimarães, 20 de Maio de 1879
Expliquemos o que se passou.
Como já aqui vimos na efeméride correspondente a esse dia, o cemitério municipal da Atouguia foi inaugurado no dia 11 de Maio de 1789. Para a condução dos defuntos, a Câmara adquiriu um carro fúnebre, feito em chapa de ferro, com capacidade para transportar até quatro defuntos de uma só vez. Este veículo, de aspecto lúgubre, ganhou de imediato a antipatia dos vimaranenses, que o baptizaram de cozinha de ferro.
Poucos dias depois, a 19 de Maio, realizaram-se os actos fúnebres de um sapateiro pobre que era conhecido como o Nove Horas. Faleceu no Hospital da Ordem Terceira de S. Domingos, a quem competia organizar o funeral, porque o defunto era seu confrade. A Ordem de S. Domingos, assim como a de S. Francisco, havia contratualizado com a Câmara a condução ao cemitério no carro municipal dos seus irmãos pobres falecidos. Assim estava destinado acontecer com o infortunado Francisco Nove Horas.  Mas as coisas aconteceriam de modo bem diferente.
Aquela segunda-feira era dia de Ladário ou ladainha das Rogações. Quando o Cabido da Colegiada chegou à igreja com aquela solenidade religiosa, estava a decorrer, na capela da Ordem, o ofício por alma do sapateiro. O espaço situado entre a porta da igreja de S. Domingos e a capela da Ordem estava repleto de gente agitada, que obrigou a que a procissão do ladário tivesse que mudar o seu percurso, atravessando o mercado para se dirigir à Colegiada. Os que ali estavam eram membros da Associação Artística, à qual o defunto também pertencia, que pretendiam impedir que seu companheiro fosse transportado para o cemitério da Atouguia na famigerada cozinha de ferro. Segundo João Lopes de Faria. A Ordem terá sido tomada de assalto por aquela multidão, que usaram da força para se apossarem do cadáver de Francisco Ribeiro Dias e lhe proporcionarem um enterro com maior dignidade. No cemitério, combinado com os membros da Associação Artística, aguardava-os o padre de S. Sebastião, que substituiu o pároco de S. Paio, provavelmente sem o conhecimento deste.
A Ordem Terceira de S. Domingos tomou medidas disciplinares contra os irmãos que, sendo membros da Associação Artística, participaram no desvio do cadáver do Nove Horas. Para assegurar que a Associação Artística patrocinaria a defesa dos seus sócios que foram objecto da retaliação da Ordem de S. Domingos, um grupo de dez sócios requerer a realização de uma assembleia geral da Associação, que aconteceu no dia 2 de Junho de 1879. Os sócios presentes foram unânimes em assumir como sendo contra a Associação as acusações e perseguições de que estavam a ser alvo os sócios processados pela mesa da Ordem de S. Domingos, assegurando a sua defesa e assumindo os respectivos custos. Sem que se saiba porquê, a direcção da Associação Artística recusou-se a dar cumprimento a esta deliberação da sua assembleia magna, como nos conta o jornal Imparcial, na seguinte notícia:

Reuniu ontem a assembleia geral da Associação Artística, a requerimento de diversos sócios, para resolver a atitude que deveria tomar em presença do último procedimento da mesa da ordem Dominica, que fizera intimar alguns sócios, irmãos daquela Ordem, para não comparecerem a acto algum da mesma e autuando-os, em resultado do conflito havido no enterro do infeliz Nove horas.
A assembleia geral era de parecer que a Associação se mostrasse solidária nos actos praticados pelos associados autuados no exercício de um dever imposto nos estatutos, e dava plena procuração à directoria para se representar na respectiva defesa.
Esta, porém, ou não querendo aceitar a solidariedade dos actos desses sócios, ou por qualquer outra circunstância inatingível, declarou por seu presidente que não o podia fazer e apenas auxiliaria por fora a causa dos associados envolvidos no processo, os quais deviam defender-se individualmente, constituindo os advogados e procuradores que entendessem.
Ora, uma assembleia é soberana e as suas decisões unânimes não podem ser torcidas a bel-prazer do presidente ou de qualquer outro membro da directoria; e assim parece-nos que mal andou o snr. Presidente não procurando executar, tanto quanto coubesse em si, as determinações da assembleia geral.
Diz-se cá por fora, e os sócios afirmam, que neste negócio estão sendo completamente ludibriados, sofrendo muito os créditos e brios da Associação.
Mau é isso; e, a ser verdade o que nos dizem ter-se passado na última assembleia geral, depõe mui desfavoravelmente sobre as boas intenções do snr. Presidente.
Talvez tenhamos de voltar a este assunto, e então seremos minuciosos.
Imparcial, Guimarães, 3 de Junho de 1879

Ao mesmo tempo, na tentativa de prevenir a repetição futura de incidentes semelhantes, a Ordem, com a sua congénere de S. Francisco, propôs que os funerais dos respectivos confrades, tanto ricos como pobres, fossem conduzidos ao cemitério no carro funerário municipal, que iria recoberto com um pano de crepe da Ordem responsável pelo funeral. A Câmara concordou com a ideia de, nos enterros, cobrir o carro com um pano preto, não das Ordens Terceiras, mas do próprio Município.
A cozinha de ferro esteve em actividade durante um pouco mais de meio século, tendo feito a sua última viagem rumo à Atouguia no dia 30 de Junho de 1930

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