S. Nicolau |
Em 1950, o
pregão foi escrito por J. M. Pinto de Almeida e o pregoeiro foi António José de
Araújo Alves de Sá. Mais uma vez, além de anunciar as festividades a S. Nicolau
do dia seguinte, o pregão arrola os problemas com que Guimarães se confrontava:
a falta de água (o novo sistema de abastecimento público estava em vias de ser
inaugurado), as obras dos Paços do Concelho, que não atavam nem desatavam,
ameaçando passar bem mais além das tais
calendas gregas, o Vitória sem campo... a Penha sem transporte..., o Paço dos Duques onde não se podia entrar, O
parque do Castelo... É bom nem falar mais, a discussão acerca da santidade
de S. Gualter, o liceu que continuava amputado dos dois anos terminais, apenas
leccionando até ao 5.º ano.
PREGÃO DE S. NICOLAU
Recitado pelo aluno do 5.º ano
António José de Araújo Alves de Sá
Outra Vez, Guimarães,
a tua Academia,
na Festa
Secular da praxe e cortesia,
te vem trazer,
folgando, a prenda dum sorriso.
— Não será certamente aberto o Paraíso
e anjinhos não
serão os menestréis dos bombos...
— Sabemos muito bem que vai sofrer uns rombos
o teu sono tão
grande que parece eterno!
Pragueja contra
nós ao céu ou pelo inferno,
mas acorda de
vez, não te espreguices tanto!...
— Dizem que tu és berço. E assim não causa espanto
que durmas facilmente,
ao som de umas cantigas...
As nossas
melodias, nobres, muito antigas,
saem do
coração, ao som das maçanetas,
desafiando à
vida os novos e os jarretas,
que já não
tenham alma, nem a saibam ter.
— Mas esses ficarão no fundo inferno a arder,
porque a alma
de estopa, ao fim da vida e ao cabo
apenas servirá
de archote ao diabo!
— Velhos de
Guimarães, olhai para o Sampaio.
Já lhe passou
em cima o sol de muito Maio,
neve de muito Inverno
e muito ardor de Estio,
mas nunca o
coração lhe estremeceu de frio!
Aquilo sim,
que é febra antiga e bem curtida!
Sabe dar o
calor da sua própria vida
à sua
Guimarães e à Festa Nicolina!
— Éo nosso tambor-mor que, à frente, nos ensina
sem quebranto
e sem pejo, ardente e sem arrufo,
como se marca
o tom dum zabumbado rufo!
— Passa depressa o tempo, ó Mocidade inquieta!
É uma sombra
fugaz, que apenas se projecta
no fundo da
saudade, a ser um óleo santo,
ungindo a
nossa vida do mais puro encanto!
Temos no
coração as laudas dum hinário...
— Talvez que um génio bom, amigo, extraordinário,
tenha gravado
em nós, riquíssimas e puras,
altas trovas
de Amor e à volta iluminuras
bordando a
toda a altura o sonho que as ditou.
—Nunca ninguém
na vida impunemente amou
uma forma
ideal, que a não fosse deixando
impressa no
que sente e vai realizando...
E então, ó Mocidade,
o teu empreendimento,
o calor do teu
peito, a flor do teu talento
sejam por
Guimarães, num culto manifesto!
— Dá-lhe o teu coração e o tratamento honesto
daquela
fidalguia antiga, que de novo
seja orgulho e
brasão do seu fidalgo Povo!
— Académica graça, ardente ou mais subtil...
É esse e tem
de ser o espírito gentil
da Festa
Nicolina! A geração moderna
assume a
obrigação de conservar eterna
a chama que
puseram sobre o seu altar.
E quem não
queira ouvir e mesmo decorar
o que manda o
preceito e a nobre Tradição
agarre sem
tardar num forte martelão
e vá quebrar
cascalho ao longo das valetas!
— Má raça presumida, inúteis paparretas,
prontinhos a
alistar no rol dos cangalheiros.
Não dão nada
sequer, nem para os farrapeiros!
. . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
—Guimarães,
Guimarães, eu sei qual é teu mal!
Perdoa tanto
amor e deixa que os rapazes
e possam
ofertar os cravos mais vivazes
de quanto
ramilhete houver para te dar!
— Andam no teu passado aromas a lembrar
grinaldas dos
Heróis, memórias seculares
de Santos e
Poetas! Tens sobre os altares
as ofertas reais e de maior beleza,
que alguém
votou e deu à Virgem Portuguesa!...
— Quando o luar inunda os panos das muralhas
E banha o teu
Castelo em líquidas poalhas
parece aureolar,
tornando transparente
O Passado que
foi razão do teu Presente!
— Tudo te nimba de oiro, ao sol da Tradição,
mas não deixes
perder nem mesmo um só botão
daquele
roseiral de Graça que resume
à Honra do teu
Nome é a unção do teu perfume!
*
* *
Guimarães,
Guimarães, que lástima não é
que deixes acabar a acrisolada fé
e em vez de proclamar as tuas louçainhas,
te ponhas ao soalheiro e até de cocorinhas,
como um velho já croco, zambro e
mui pascácio.
— Pede a tua Justiça, mesmo sem Palácio!
Mais água já
vais ter para lavar a pele.
Poderás tomar banho e bem precisas dele!
Há coisas por aí que são como escalracho:
— Vai a Santa Lua
e bota aquilo abaixo!
Em Escolas
assim as almas pequeninas
ficarão
bafientas, quase em ruínas,
como o mau
pardieiro em que por força as metem!
— Os Paços do Concelho, esses, então, prometem
passar bem
mais além das tais calendas gregas.
Ficarão de
reserva as suas pedras negras
para que em
monumento Guimarães um dia
consagre a
Indiferença ou mesmo a Cobardia...
O Vitória sem campo...
A Penha sem transporte...
Oh, que bafo e
mortalha de indizível morte
te vai
ameaçando, se não vais reagindo!
— O Paço de Bragança é bom e muito lindo,
mas ainda se
não pode entrar os seus umbrais.
— O parque do Castelo... É bom nem falar mais
em tanta coisa
triste e mal encaminhada!
Anda a nossa
prosápia muito envinagrada.
Nossa tristeza
é tal, que a gente nem sequer
sabe se é santo ou não o nosso S. Gualter!
(Cuidado com a
história... É grande e grave o risco,
se as armas a
empregar forem de S. Francisco!...)
— Ó malta do Liceu, e a nossa alta desgraça,
(Santinho Nicolau
o bom milagre faça)
aquela que por
vós e por mim mesmo sinto!?
— A gente lá vai indo andando até ao Quinto,
à custa dos
papás, do tempo e algum estudo.
... Mas os
outros dois anos, nem por um canudo!!!
Com toda esta
má sorte assim a perseguir
é melhor ir à
bruxa ou mesmo desistir.
— Bem fazem da Cidade os “tesos” sinaleiros.
Se chove ou se
faz sol, são logo os mais lampeiros
a fugir do seu
posto, sem pudor nas “latas”.
-Metem-se no
Aristeu ou Casa das Gravatas!...
Eu quero-vos
pedir, meninas recatadas,
um pequeno
favor, um dos pequenos nadas,
que nos fará
da vida um pouco o Paraíso:
— dai-nos mais amiúde a esmola dum sorriso.
Em vez de morar
lá, pertinho das estrelas,
ou passar o
tempo ao cimo das janelas,
descei até à
rua, vinde até cá abaixo.
— Eu nunca vi cidade em que haja tanto macho
e ausência sem
igual das graças femininas...
— Fazei este favor cerúleas, meninas!
*
* *
Povo de Guimarães,
herdeiro das virtudes
duma raça de
heróis enérgicos e rudes,
que a toda a
hora vão, por força do seu braço,
imprimindo na
Terra o inextinguível traço
do Trabalho
fecundo!;
Povo
do nosso Minho,
que pões à
nossa mesa o pão e o alegre Vinho!;
Peleiros, mesteirais,
ó gente dos teares,
lançai à nossa
volta os líricos cantares,
esquecei neste
dia os campos e oficinas.
— São para vós também as Festas Nicolinas!
E vós, ó
numeroso bando de andorinhas,
que sois desta
cidade e nunca se despede.
Vós, que
fazeis lembrar as róseas cantarinhas,
junto à fonte
a esperar, sorrindo a quem tem sede...,
dai-me do
vosso olhar o céu, que anda guardado,
ara dar todo
inteiro ao vosso namorado!
— Vinde,
alegre promessa, almas de toutinegras,
acolher-vos no
amor das nossas capas negras!
— Vamos fechar na roda, inteira, esta Cidade,
num bailado de
Amor, de Sonho e Mocidade!!!
*
* *
Donas de Guimarães,
de nobre e alta linhagem,
herdeiras, por
direito, à nossa simpatia,
Vós, que sois
o sorriso e a imaculada imagem
duma gesta de
Amor e pura Fidalguia,
descei da
enluarada torre de menagem,
do nimbado
fulgor da vossa Senhoria
e vinde receber
o preito e a vassalagem
duma antiga,
fiel eterna cortesia!
— Na Festa Nicolina andaram, com certeza,
ébrios de
Mocidade, arautos de Beleza,
vossos Noivos
gentis, os Pais, vossos Irmãos...
Quero acabar meu
Bando, erguendo o meu olhar
às santas que
pusemos sobre o lindo altar
e a quem tomo
num beijo as graciosas mãos.
Guimarães, 5 de
Dezembro de 1950.
J. M. Pinto de Almeida
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