Colegiada da Oliveira |
3 de Junho de 1700
O Arcebispo D. João de Sousa
representou a El-rei que ordenasse à Câmara que o recebesse na sua entrada
solene em corpo de Câmara. A representação tem a data de 23 de Abril de 1700. A
provisão de 13 de Maio de 1700 mandou ao corregedor informar ouvindo a Câmara.
Esta em 3 de Junho de 1700 informou que era contra a jurisdição real e posse da
vila e narrou o passado com D. Veríssimo de Lencastre, e mesmo com D. Luís de
Sousa, que não contrariaram esta. El-rei resolveu haver por escuso a
representação do Arcebispo pelo Desembargo do Paço, não se cita a data desta,
mas a nota posta diz e termina assim: “E sendo isto tão legalmente averiguado e
decidido lhe ficará servindo de exemplo e a seus sucessores não tornarão a
intentar semelhante pois todo o desengano serve de melhor quietação.”
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
II, p. 231.)
O conflito entre a Colegiada de Guimarães e o
Arcebispo de Braga acerca da jurisdição eclesiástica a que estava obrigada
aquela corporação vimaranense é, pelo menos, tão antigo como Portugal. A primeira
concordata entre a Sé de Braga e o Cabido de Guimarães data de 23 de
Outubro de 1216 e foi confirmada por Bula do Papa Honório III, dada em Latrão
no início do ano seguinte e reconfirmada pelo papa que se lhe seguiu, Gregório
IX. Até aí, a Colegiada de Guimarães não pertencia a nenhuma diocese, tendo ficado com algumas
sujeições ao Arcebispo de Braga, a cujo acatamento os de Guimarães foram sempre
arredios.
São incontáveis os desaguisados que marcaram
esta disputa ao longo dos séculos. Daremos alguns exemplos.
Na tarde de 6 de Maio de 1405, quando chegou
a Guimarães para fazer visita pastoral à Colegiada, o Arcebispo, D. Martinho de
Miranda deparou-se com as portas da igreja fechadas. Como chovia, procurou
abrigo debaixo do Padrão da Oliveira, mandado notificar o Prior, D. Diogo
Álvares, da sua presença. O Prior recusou-se a abrir a porta e a dar pousada ao
arcebispo, justificando-se com o argumento de que, na visita do ano anterior, o
Arcebispo teria violado os termos da concordata, retirando ornamentos da igreja.
Arcebispo e Prior eram inimigos pessoais. O primeiro já havia excomungado o
segundo, correndo uma pendência judicial entre ambos.
Em Agosto de 1459, o Brás Afonso, escrivão do
Arcebispo de Braga, chegou à Colegiada para a visitar e proceder ao inventário
do tesouro. O Prior, Afonso Gomes de Lemos, não autorizou a visita, ordenando
que a porta não lhe fosse franqueada.
Em 1532, a Câmara de Guimarães queixou-se dos
excessos que eram praticados nas visitas a Guimarães, no que tocava ao número
de pessoas que participavam na comitiva dos visitadores e às exigências que
tinham em relação à comida porque, visitando várias igrejas no mesmo dia,
exigiam que lhes fosse servido jantar e ceia em todas elas. O Arcebispo
respondeu com uma provisão, mandando que em cada dia as refeições a que tinham
direito os visitadores fossem fornecidas por uma única igreja.
Em Setembro de 1538, o Arcebispo de Braga, o
príncipe D. Henrique, que viria a ser cardeal, regente e rei de Portugal, após
o desaparecimento de D. Sebastião, visitou Guimarães pela segunda vez. O Prior, o Cabido e
o povo da vila tentaram resistir, colocando embargos e interpondo reclamações.
Não tiveram sucesso, porque o arcebispo infante era demasiado poderoso para que a sua
vontade pudesse ser contrariada.
Em 1552, era outro o Arcebispo, mas as
resistências do Prior e do Cabido de Guimarães eram as mesmas. Em meados de
Outubro, anuncia-se uma visita de Baltasar Limpo à vila e à Colegiada. Em
Guimarães, sustenta-se que o Arcebispo se preparava para incorrer em usurpação
de jurisdição, por desrespeitar a concordata entre a Colegiada de Guimarães e a
Sé de Braga. O Cabido dá
conta do seu protesto no adro da igreja da Oliveira, perante as autoridades
concelhias. Os clérigos da Colegiada queixam-se para Roma e consideram o
Arcebispo inibido de exercer jurisdição sobre a igreja da Oliveira. Dias
depois, o Prior, Gomes Afonso, informa que recebera notícia de que ele e os restantes religiosos da Colegiada de Guimarães haviam sido suspensos, excomungados e
privados dos seus benefícios pelo Arcebispo. O diferendo irá prolongar-se por vários meses, terminando com a assinatura, em Lisboa, no dia 3 de Julho de
1563, de uma nova concordata sobre as jurisdições do arcebispo e do prior de
Guimarães.
Nos anos seguintes, Baltasar Limpo faz várias
visitações a Guimarães e à sua Colegiada. A visita de 1556 fez renascer o
conflito entre o Cabido de Guimarães e a Sé de Braga, resultando numa nova
queixa apresentada em Roma contra o Arcebispo.
No final de Novembro de 1590, as relações
pareciam pacificadas. O Arcebispo preparava-se para visitar Guimarães e o
Cabido decidiu ir esperá-lo, com uma cruz, à Porta da Vila, embora a tal não
fosse obrigado pela concordata de 1563.
A acalmia não seria definitiva. No início de
1616, o Arcebispo Frei Aleixo de Meneses, que estava na corte em Madrid,
pretendia enviar visitadores a Guimarães, deparando-se-lhe a oposição Câmara. Numa
carta que enviou à vereação vimaranense, pedia-lhe que não se intrometesse
naquele “negócio”, que não colidia com a jurisdição da Câmara,
ameaçando queixar-se ao rei. No dia 6 de Maio seguinte, o Arcebispo nomeia dois visitadores
para irem à vila de Guimarães e às igrejas anexas. Em chegando a Guimarães,
logo lhes começaram a ser levantados obstáculos. Quiseram colocar mesas e
cadeiras na igreja ou no claustro da Colegiada, para procederem à devassa do costume, mas o Cabido não consentiu. Os
enviados do Arcebispo ameaçaram os cónegos de excomunhão e multa pesada, caso
não desistissem do uso da força e violência para os impedir de se
abancarem onde entendiam. Em resposta, os cónegos comunicaram que recorreriam
para a Santa Sé dos procedimentos e castigos que lhes fossem impostos,
argumentando que a concordata não estava a ser respeitada, já que estipulava a que
apenas a pessoa do Arcebispo tinha poder para visitar a Colegiada de Guimarães.
As queixas dos visitadores de Braga em
relação ao modo como foram tratados em Guimarães seriam muitas: os comerciantes
da vila recusavam-se a vender-lhes alimentos; uma noite, deram-lhes com “três
matracas”; atiraram-lhes pedras às janelas das casas onde se alojaram; os seus
criados foram espancados. O Arcebispo voltaria a escrever, de Madrid, à Câmara,
a queixar-se das “desobediências e sujidade” a que os seus enviados foram
sujeitos em Guimarães e a acusar a Câmara de ser responsável por tais factos,
por entender que “se a câmara não resistira tanto em se fazer esta visitação,
como mo significaram por cartas suas, não tiveram atrevimento os mancebos e
ociosos dessa vila, para fazer o que fizeram”. Terminava informando que iria
providenciar para que os malfeitores não ficassem sem castigo.
O Arcebispo que se seguiu, Afonso Furtado de
Mendonça, informou o Cabido, por carta de 4 de Maio de 1620, que, na
impossibilidade de visitar pessoalmente Guimarães, se preparava para enviar três visitadores
(o Bispo de Nicomédia, o mestre-escola da Sé de Braga e o seu vigário geral),
recomendando aos cónegos que usassem de “muita prudência” para decidirem se
seria justo insistirem em não disponibilizarem mesas e cadeiras na igreja e no
claustro para que os visitadores possam proceder às diligências de que vinham
encarregados. O Cabido respondeu que nada podia fazer sem ordem do Prior que,
como quase sempre acontecia, estava ausente, pelo que lhe iriam enviar a carta do
Arcebispo, ficando a aguardar por resposta para saberem como deveriam proceder.
No dia 9, a Câmara, depois de saber que o Arcebispo não faria a visitação
pessoalmente, reuniu as gentes da governança e dos mesteres, tendo decidido que, à
custa das rendas do concelho, iria defender as prerrogativas de Guimarães no
Porto, em Lisboa e na corte de Madrid.
Os visitadores, entretanto chegados, alojaram-se numa casa da rua de Santa Luzia. Foi aí que foram notificados por um advogado de que tinha sido apresentado agravo contra eles na justiça do rei no
Porto, por terem assentado mesa na Colegiada a fim de visitarem a vila sem a
presença do Arcebispo e por terem usado da força (um clérigo que os acompanhava
chegou a puxar dum pistolete em plena igreja contra os vereadores que se lhes
opunham).
naquela ocasião, as autoridades de Guimarães nomearam
procuradores advogados da audiência de Guimarães e das Relações do Porto e de
Lisboa “para defenderem a posse desta vila em ser visitada pelo arcebispo,
quando venha por seus visitadores como ele agora queria”.
O diferendo iria prolongar-se pelos anos
seguintes. Em Novembro de 1622, o representante do Papa em Lisboa escreveria ao
Arcebispo de Braga, solicitando-lhe que não visitasse Guimarães enquanto que o
Papa não se pronunciasse sobre o litígio.
No início de 1624, as relações entre a Câmara
de Guimarães e o Arcebispo Afonso Furtado de Mendonça eram de cordialidade,
pelo menos formal. De Braga chegou carta em que o prelado dava conta dos
impedimentos que estavam a atrasar a sua visita a Guimarães. A Câmara
respondeu dando conta da sua boa vontade para acolher o Arcebispo. Logo em
seguida, no dia 21 de Fevereiro, numa nova missiva, o Arcebispo questiona a
Câmara sobre o modo como pretende recebê-lo na sua primeira visita à vila. A
resposta seguiu dois dias depois. A Câmara afirmava que, não sabendo como eram
antigamente as recepções das primeiras visitas dos Arcebispos, solicitaria a
todos os nobres da vila que fossem, a cavalo e “com demonstrações de muita
alegria e contentamento nesta sua boa vinda”, ao encontro do Arcebispo, que, à entrada na vila, seria recebido com pálio, cujas varas seriam transportadas por pessoas nobres.
Quando, no final de Junho de 1672, o
arcebispo Veríssimo de Lencastre, anuncia que tencionava visitar Guimarães no
dia 2 de Julho e informa que a entrada deveria ser feita conforme dispunha o
Cerimonial dos Bispos, havia muito tempo que os titulares da Sé de Braga não
punham os pés em Guimarães. No dia 30 de Junho, a Câmara recebe a carta e
convoca a nobreza da vila para deliberar acerca do assunto. Não apareceram
mais do que quatro fidalgos. A resposta que seguiu para o Arcebispo dava conta
de que não foram encontrados nos arquivos da Câmara registos de como se costumavam
fazer aquelas entradas públicas, o que parece pouco plausível, uma vez que a
resposta transcreve, quase ipsis verbis, os procedimentos da recepção de 1624.
O Arcebispo, por ter percebido que a vereação não o iria receber À chegada, mudou
secretamente o programa da visita, entrando em Guimarães a cavalo, por volta
das três horas da manhã, com as portas da vila ainda fechadas. O sacristão, percebendo
o que se estava a passar, acordou a cidade à força de repiques do sino. A Câmara, que
preparara “as folias, danças, pelas, charamelas, e o mais festejo possível para
a entrada, e armações pelas ruas”, seria apanhada de surpresa.
Tendo presente todo este historial de quezílias a propósito da
jurisdição de Guimarães, o Arcebispo D. João de Sousa, pretendendo visitar a vilas,
pediu ao rei, no dia 3 de Junho de 1700, que obrigasse a Câmara a ir recebê-lo
aquando da sua entrada pública e solene. Depois de ouvir a Câmara, que informou
que a pretensão do Arcebispo ia contra a jurisdição do rei e os privilégios das
gentes de Guimarães, D. Pedro II não fez a vontade ao prelado bracarense.
Esta longa história ainda teria mais
capítulos.
0 Comentários