Pregões a S. Nicolau (76): 1924

S. Nicolau

Em finais de Novembro de 1924, os jornais anunciaram que não se iam realizar as Festas Nicolinas, em sinal de luto pela morte de um herói nacional, o aviador Sacadura Cabral, que falecera num acidente aéreo no Mar do Norte, no dia 15 daquele mês.

Porém, sempre houve festas. O pregão foi escrito pelo Padre Gaspar Roriz e o pregoeiro foi António Correia da Silva, estudante do 7.º ano de Ciências.


Bando Escolástico
Recitado em 5-XII-1924 pelo aluno do 7.° ano de Ciências
António Correia da Silva.

Eu venho anunciar a Guimarães e ao mundo,
a rufos de tambor, em versos sublimados,
a aurora mais formosa, o dia mais jocundo
que surge em toda a terra! Eu sei, por meus pecados,
que a terra não merece o nosso festival.
Nós somos Mocidade e a Mocidade é Amor,
Franqueza e Expansão. A terra é o lodaçal
de lama e sangue. Oh! sim! Em ódio, em rancor,
debatem-se as nações. Um negro espectro — a Guerra —
que os povos mergulhou em dor, em luto eterno,
passou qual maldição a transformar a terra
e o mundo ficou sendo um báratro, um inferno.
E neste inferno imenso, em que nos debatemos,
num mal-estar geral, numa situação crítica,
demónios há aos mil!... Mas o pior dos demos
é, como vós sabeis, o demo da Política...
Ó génio de Bordalo, Artista criador
de tipos nacionais! Talvez fôsses à forca,
mas tu dirias sempre: — “A Porca está maior,
a Porca, está mais suja, a Porca está mais porca”.

Senhoras, perdoai! A festa é de alegria
e tem a limpidez do vosso meigo olhar!
Eu não falarei mais naquela porcaria...
Senhoras, perdoai!... Eu quero-me lavar...
Mas onde existe a fonte, a límpida corrente,
que para me lavar a água em si contenha?
Criadas de servir, dizei, dizei à gente,
se porventura já secou a nossa Penha...
Eu vejo-vos em bicha ao pé dos fontenários;
se um incêndio voraz aqui nos aparecer,
não valerão de nada os nossos Voluntários;
ai míseros de nós — teremos de morrer!...
E Guimarães será destroços e ruínas:
destroços a granel, ruínas em montão!...
Sumiram-se na terra as águas cristalinas?
Rompeu-se, por acaso, a canalização?
Ou houve alguém que fez, na terra do bom vinho,
da água — oh! que horror! — da água monopólio?
Há açambarcador?! És tu, Banco do Minho,
que nos levas a água e as minas de petróleo?
O petróleo, oh! sim!... e não bastava isto:
no cofre forte achaste — oh! grande, imensa sorte! —
do petróleo ao pé a água que, pelo visto,
não é água vulgar, mas antes... água forte...

Querem levar-nos tudo!... Avaros e forretas,
nem poupam o Liceu... Que negra e triste vida!
Tiraram-nos o sexto e o sétimo de letras:
ficámos com um liceu de via reduzida...
Só sábios temos, pois: estudantes, professores,
sábios somos, oh! sim! altas cerebrações.
Mas poetas não há, não temos oradores!...
Ai, pátria de Vieira, ai, pátria de Camões!
Ai, velha Guimarães, famoso burgo antigo!
chamaram-te Araduca as gerações passadas,
mas hoje, Guimarães, quero chorar contigo:
as letras que tu tens são letras... protestadas...

Também vou protestar, com alma e com calor,
Magriço a combater por vós, lindas meninas —
contra a proibição que fez um tal reitor,
que não vos deixa usar as capas e as batinas.
Senhor reitor, cautela! Escute, não se esqueça
de que não há no mundo um traje mais galante
do que este gorro negro em cima da cabeça,
do que a batina preta e a capa do estudante!
Recorde do Mondego as águas murmurantes,
os cisnes a cantar na linda Lusa Atenas.
Recorde as gerações de belos estudantes,
cantando o seu prazer, chorando as suas penas:
oão Penha, epicurista, entoando odes, hinos,
ao peixe da Camela; Antero, o sempre triste;
Junqueiro, o modelar autor de alexandrinos;
João de Deus, cantando o que de belo exist
na Natureza imensa!...
Ó príncipes das letras,
o que é que fez brilhar o genial talento
das vossas produções? As vossas capas pretas,
bandeiras juvenis a flutuar ao vento!...

Mestres sem coração que lá, na Lísbia amada,
fizestes irritar os nossos companheiros,
contra a donzela que é tão fraca e delicada
feros vos amostrais, ó lobos carniceiros?!
Talvez queirais, talvez — oh! negra e triste sina! —
que elas a tiritar passeiem pelas ruas
sem este gôrro, sem a capa, sem batina,
obedecendo à Moda — à Moda que as traz nuas?!

Alunas do Liceu, ó Mocidade em flor
que connosco viveis a estudar e a sorrir,
não obedeçais, não, da Lísbia ao tal reitor:
alunas do Liceu, oh! ide-vos vestir...
Deixai a saia curta e os braços desnudados,
deixai o pó-de-arroz e o rubro do carmim,
oh! não queirais, oh! não, vestidos decotados...
Quereis um figurino? Olhai, olhai para mim:
batina a negrejar no meu peitilho branco,
a capa a flutuar ao vento da Ilusão,
nos lábios um sorriso, este sorriso franco,
que nasce puro e santo em nosso coração.

Assim, de grande gala, eu venho a saudar
as Damas tão gentis da nossa linda terra.
Senhoras que volveis o vosso meigo olhar
para a nossa Mocidade! o nosso peito encerra
cofres de puro amor — os nossos corações!
Senhoras, não sou mais que um simples estudante,
mas se me fôra dado o estro de Camões,
ou o estro genial que imortalizou Dante,
Natércias da Saudade, ó Beatriz, Amores,
ó Musas da poesia, ó formosura ideal,
havíamos de ser os vossos trovadores,
cantando o vosso amor, Mulheres de Portugal!
Aquele amor que deu às páginas da História
os nomes imortais, fulgores de eternos brilhos,
da Rainha Isabel de tão grata memória,
Filipa de Vilhena a consagrar os filhos
da Pátria no altar!
Mulheres Portuguesas!
Ó nossas santas Mães! Ó nosso puro amor!
rosários desfiai, que as vossas santas rezas
nos podem dar ainda um Portugal maior!

E vós, ó juventude, ó linda Mocidade,
donzelas que sorris sorrisos de ventura,
que tendes nesse olhar espelhos de bondade,
que tendes em vossa alma escrínios de ternura;
formosas que fazeis da terra um paraíso,
estrelas que brilhais no céu do nosso amor,
não deixeis de nos dar, ó belas, um sorriso;
em troca da maçã queremos uma flor:
a flor do vosso afecto, aquele afecto puro
que faz realçar tanto a vossa Mocidade!
Havemos de a guardar em cofre bem seguro,
havemos de a regar com pranto da Saudade!

Amigos, atendei: deveis correr a pau
o que sem santo e senha entrar no festival!
O Santo, já sabeis, o Santo é Nicolau,
a senha pode ser a... cédula pessoal…
Galharda Mocidade, ó forte geração,
dos bombos arrancai um som cavo e profundo,
que pareça o ribombo imenso dum trovão
a estremecer o céu, a terra, o mar e o mundo!
Que vá anunciar ao longe, ao mundo inteiro,
num eco atroador, imenso, altissonante,
que a árvore mais linda é a nossa — é o pinheiro —
que quem reina no mundo é sempre o ESTUDANTE

P.e Gaspar Roriz

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