Milagre de S. Nicolau |
Em 1913 não
houve Festas a S. Nicolau em Guimarães. Regressariam em 1914, mas há poucas
notícias do modo como então decorreram. Aparentemente, resumiram-se à entrada
do pinheiro, no dia 29 de Novembro, e à declamação do pregão, no dia 5. O texto
do pregão deste ano foi escrito por Leão Martins, que o dedicou à memória de João de Meira, entretanto falecido. Na versão imprensa, consta
como pregoeiro o estudante do 5.º ano Francisco de Assis Pereira Mendes. No
entanto, os jornais anunciavam que o pregão seria declamado pelo quartanista
Mário Guimarães.
PREGÃO ESCOLÁSTICO
Recitado em 5 de
Dezembro de 1914
pelo
estudante do quinto ano
Francisco de Assis Pereira Mendes
À memória do saudoso douto e apaixonado entusiasta das Festas Nicolinas,
João de Meira.
Pio IX
ao saber que a Festa não se fez
Porque a rapaziada assim o compreendeu,
Disse para consigo: — Ah! Ah! que desta vez
S. Nicolau
morreu...”
E até o D. Afonso, outrora tão valente,
Baixinho,
perguntou:
— “Estudantada nova, ingénua e inocente,
A Festa
terminou,
A Festa tão antiga, a Festa de nobreza,
A mais original?
Oh! nunca fosse rei da gente portuguesa,
Nunca, para meu mal...”
Cada um assim pensava… ambos tinham razão...
— Pois se o ano passado a Festa não brilhou!!
O que lá vai, lá vai!
termine-se a questão
Que o nosso Nicolau às lidas já voltou...
Guimarães já não tem, como antigamente,
Um aspecto caduco, intriguista, indecente.
Que ao nosso forasteiro outrora oferecia...
Guimarães despertou de funda letargia
E ao clarão duma luz fugiu do retrocesso
E disse em alta voz:
— “Eu cá vou no
progresso!
Senão examinai:
— Já viram
alguma vez,
Em solo português,
Cidade como a nossa, embelezada, enfim,
Conhecida lá fora — a Cidade-jardim?
— Já viram em sítio algum (e como as coisas
são!)
Marquises de luar às portas do Jordão?
— Já viram alguma vez a luz que faz tonturas
Que ou alumia bem ou nos deixa às escuras?...
— Quando é que já se viu templos em árdua
guerra?
Oliveira reclama e deita logo a terra
O colega S. Paio e, nestes tempos maus,
Semeia aquele largo a abundantes calhaus...
— Onde é que se percorre (isto por dois
tostões!)
Quatro léguas ou três, de grandes dimensões,
Como daqui até Braga em carros do Barroso?
— Avante, Guimarães! caminha glorioso I!
— Qual cidade é que tem (não vão julgar que é
troça!)
Esquadra policial activa como a nossa?
— Quando é que já se deu (ouçam, tenham
paciência!)
Ao ler-se um testamento,
Herdarem capital o Manaca e a Vicência?
— Quando é que Guimarães teve o supremo gosto
De, manhã cedo ou tarde, à hora do Sol-posto,
Ouvir sinos tanger, com certo cuidadinho,
Pelo nóvel e importante artista o Arranjinho?
— Quando foi que as mulheres, à moda de
Inglaterra,
Declararam-se cm greve, aqui, na nossa terra,
Como no Castanheiro há dias sucedeu?
— E depois, e depois?... tenham bem lá na
vista:
Quando das eleições, um grupo socialista
Na cabeça lhe
deu
Para a urna concorrer; e, se o grupo
vencesse,
(Peta não
parece!)
De braço erguido ao ar, diria em forte voz:
— “Quem manda no poleiro agora somos
nós!
Chegou enfim a voz ao povo lutador
Que vivia oprimido, há muito, como um
fardo...”
—Olha a mula,
oh Bernardo!!
Quem do alto do castelo olhar por um funil.
A eléctrica verá, lá baixo, em Creixomil...
Quem numa padaria o trigo for comprar
Pela lei não poderá o pãozinho apalpar...
Como qualquer potinho à fonte não pode ir
Sem testo...
para o cobrir.
Pois de contrário o guarda exclamará assim:
— “Pelo código atendendo, oh filha, estás
multada...
Um escudo para a Câmara e outro para mim,
Larga, não
custa nada!”
— Deixa de ti falar, oh velho Guimarães
E recebe de nós sinceros parabéns!...
— “Adeus, formosa flor! é seu meu coração!
Vá! não seja tão má! diga adeus...
— “Queim, João?
— “Casta donzela! seja meiga! ai! quem me
dera
Estar unido a si! Oh! que felicidade
Seria para os dois, amor...
—
“Não que antom era!
— “Sim, na
realidade,
Não sabe o quanto sofro... imenso padecer..
— “Não que
antom deve ser..
— “Atenda ao que lhe digo, eu falo-lhe com
fé...
— “Isso! não
que antom é...
— “Feia!!... porque não crê na minha
confissão?
— “Queim? Jo...
não vai, João...
— “Malcriada mulher! para si não tomo a
olhar...
— “Está
bem, deixa ficar...
Um dia Guimarães ia sendo roubado.
Vizela, sua filha, de sangue endiabrado,
Destarte lhe
falou:
— “Mocidade para mim, meu pai, já terminou.
Cansada de viver, sem confortos, sem luz,
Mal posso suportar o peso desta cruz
Que me aprofunda a dor. Quero-me libertar,
Juntamente com os meus. Desejo-me casar,
Ter uma vida nova, enfim, estar liberta,
Deste freio cruel que minha boca aperta..
Solte-me da prisão... que eu seja
independente,
Liberdade gozar como toda essa gente
Que vive feliz. Pai: satisfaça ao pedido,
Conceda-me o
meu dote...”
E não
compadecido,
Furioso Guimarães, cansado e já velhote,
À filha respondeu:
— “É demais... todavia eu dar-te-ei o que é
teu..
Mas tanta pressa, filha, (ele disse
sorrindo...)
Não é tua essa ideia... isso vem do Armindo
E de outros tantos mais. Querem-te
desgraçar...
A cantiga é de morte... a tua autonomia
Só para depois... deixa-me a mim governar.
Os de Vizela, então, queriam mais folia?
Que esperem
lá por isso!
Maldito seja quem te meteu no toutiço
Essa ideia mesquinha, avara e tão manhosa!
Péssima educação, minha filha vaidosa!
Ai de ti e dos teus! Mas isso o que me
importa?
Lá fora, filha ingrata, anda, fora da porta,
Não estou para
te aturar...
Poltrões! poltrões! poltrões!l Pensavam em me
matar...”
E o velho Guimarães pondo a mão na barriga,
Da afronta se vingou fazendo-lhe uma figa...
— Damas de Guimarães! Deusas cheias de graça!
A luz do vosso olhar que nossa alma inebria
É balsamo suave... é brisa que perpassa...
Deste viver atroz sois a nossa alegria!
Damas de Guimarães! oh anjos da bonança!
Que a minha terra cria e conserva e retêm:
Vós sois o nosso guia em quem temos esperança!
Se padecemos nós, vós padeceis lambem.
Damas de Guimarães: se a nossa Festa brilha
É porque auxilio há, mas de certo valor!
A ninfa que deslumbra, a deusa maravilha
Da Festa a Nicolau — sois vós o Protector!
Rapazes, atenção:
A lei de Nicolau decreta, neste dia,
A todo o estudante amigo da folia,
Que o bombo
entre em acção.
Rufai valentemente! a Festa é de valor!
— Que importa que arrebente a caixa ou o
tambor?
— Que importa que o barulho aumente em grande
escala
Se cada pele
que estala
Atroa muito mais que os célebres canhões
Usados lá na guerra? Avante! sem receio
E força nos
pulmões!
Arrebentai, enfim, tudo de meio a meio I
De parte a perfeição. Inútil é o acerto.
Instrumentos — deixai ficá-los sem concerto,
Para que essr. gente diga, hoje, neste dia:
— “Cada um dos
canhões
Da nossa
artilharia
Tem muito mais valor que os seis dos alamões!!”
Leão Martins
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