Pregões a S. Nicolau (56): 1903



O pregão de 1903 foi escrito por João de Meira e foi recitado por João Joaquim da Costa Oliveira Bastos, reincidente nesta função, agora com o título de “estudante de Alemão, aposentado do 1.º ano filosófico, por falta do mesmo”. Foi dedicado a António Joaquim de Almeida Gouveia, apresentado como o “vimaranense que em mais arredada época tomou parte nas Festas de S. Nicolau”, e que tivera uma participação muito activa nas festas durante largos anos: foi o pregoeiro de 1831, 1838 e 1844, aqui com Inácio do Lago; foi um dos autores do processo de reivindicação da renda de Urgezes à Colegiada, que, na década de 1830, andou a correr pelos tribunais; foi um dos fundadores da Associação Escolástica Vimaranense; foi secretário da comissão de festas em 1839. Exerceu as funções de cartorário da Ordem de S. Domingos. Foi a partir dos seus apontamentos que foi possível recuperar os pregões que não circularam impressos. A dedicatória de João de Meira é feita em forma de poema, que antecede o pregão, na sua versão impressa.
A chuva, que naquele ano teimou em perturbar as festas, impediu que o pregão fosse lido em parte dos lugares usuais.


ESTE PREGÃO ESCOLÁSTICO DE 1903
Dedica seu autor
Ao vimaranense que em mais arredada época tomou parte nas
FESTAS DE S. NICOLAU
A António Joaquim de Almeida Gouveia

António Joaquim de Almeida Gouveia

És tão velho, velhinho prazenteiro,
Que eu nãosei, neste mundo ingrato e mau,
Se foste tu o que nasceu primeiro,
Ou se nasceu primeiro Nicolau!

O teu ar de velhinho hoje cativa
A nossa mocidade hilariante.
Que um velho é como uma bandeira viva,
Uma insígnia animada e palpitante!

Vou-te lembrar proezas de Heroismo
Antigos casos cómicos, fatais;
Alguns mais velhos do que o Setcmbrismo,
Outros passados já pelos Cabrais.

Pregão de 31 que recitaste...
Assombrado respeita o mundo inteiro.
(Pelas ruas e praças declaraste)
Mimoso dom dos céus, Miguel primeiro!

E quando contra vós se deu sentença
Sobre a renda em questão, coisa imprevista.
Vós fostes à Oliveira, sem detença,
Para bater no cónego Baptista!

E caso triste caso desgraçado
Da queda do pinheiro mal seguro,
Dando morte a um rapaz, que era enteado
De um gago que morava Atrás do Muro!

E a cena do Maneta, um infeliz.
Que agrediu a punhal a Academia;
E não foi de cabeça ao chafariz
Graças a um batalhão dc infantaria!

E esse ano que a memória inda conserva,
Esse bom ano, tão remoto e vago,
Em que tu figuraste de Minerva
E de Mercúrio o frei Inácio Lago!

E a dança em paródia desabrida
Ao Lacote, engenheiro das estradas!
Tantas coisas bonitas, minha vida!
Tantas coisas agora ignoradas!

Tantas coisas passadas eu podia
Fazer ante teus olhos desfilar,
Bom velhinho, que vês nossa alegria
Quem sabe? com vontade dc chorar!

Mas recordar é sempre uma Tortura!
E esse grande mal, se hoje to faço...
Aceita-me em desconto da amargura,
Um abraço, velhinho, um grande abraço.



Pregão Escolástico
Recitado em 5 de Dezembro de 1903
Pelo estudante de Alemão, aposentado do 1.º ano filosófico, por falta do mesmo
João Joaquim da Costa Oliveira Bastos

FESTAS de centenário, ó festas de encomenda
Cores vivas a tostão e ceia numa venda
Festas do rei inglês, festas do rei de Espanha,
Vossa alegria não, festas, não é tamanha!
Festas de S. Torquato e festas da Agonia
Tremei, festas, tremei que a nossa principia!

Ó Palas-Ateneia, ó Deusa gloriosa,
Deusa de fundo olhar onde se espelha a lua,
Deusa da trança de oiro e faces cor-de-rosa,
Ó Palas-Ateneia, ó Deusa luminosa,
Ensina-me a cantar a festa pela rua.
Ensina-me a cantar, Minerva dos gentios,
Ó Deusa modelar de corpo escultural,
Ensina-me a mudar estes meus versos frios,
Ó Palas-Ateneia, ó Deusa dos gentios,
Num canto de vigor, num hino triunfal.
Num hino triunfal, Minerva protectora,
Num canto singular, titânico, fulgente,
Num brado que se vá por esse espaço fora
Para uma banda até às regiões da Aurora,
Para outro lado até aos mundos do Poente!

E tu ó Nicolau perdoa, que afinal
És um pretexto só ao nosso festival.
Nós amamos-te muito, ó querido santo, é certo,
Mas julgares só tua a festa, é desconcerto.
Não quadra a oração com a nossa mocidade;
Os moços querem rir, querem hilaridade
E preferem no mundo (ó desconcerto seu!)
Uma Santa ainda viva a um Santo que morreu.
Depois de velhos sim, que as contas nos vão bem
As contas… e a borracha, ai, não vai mal também
E pois que és Santo e bom e sabes bem sentir.
Tu, ó bom Nicolau, no Céu hás-de sorrir
Vendo-nos amanhã, a cavalgar louçãos,
Passar de rua em rua a distribuir maçãs
E hás-de dizer até, sem raiva das donzelas:
— A festa é para mim, mas as maçãs para elas!

E agora ao começar, já nada mais me resta
Senão cumprimentar e pedir — vénia à imprensa;
É boa precaução rogar esta licença
Não vá o “Burgo Podre” impeticar com a festa!

Um — Ah! — atroador, um — Ah! de grande espanto
Subiu de cada rua, ouviu-se em cada canto.
Guimarães tinha luz levada do diabo,
Que arde sem pavio e acende por um cabo,
Luz que não deita fumo, luz que não faz morrão,
Luz que lhe dá um ar de civilização;
Luz da melhor que, enfim, ó suprema ironia.
Falta às vezes de noite e acende-se ao meidia!

Exorna Guimarães outro melhoramento:
A polícia já tem um lindo fardamento,
E revólver e sabre e até um bacamarte
Com que meter figura e medo em toda a parte.
— Com ela vão findar, barulhos, bebedeiras,
E vão também crescer namoros às sopeiras!

A Cristina fundou uma escola divina,
Viva a escola pois, saudemos a Cristina
Com vivas de atroar a terra e as alturas.
Viva a Cristina, viva a mestra de culturas,
Que nos vai ensinar, modesta, sem bravatas,
A cavar pés de burro e a plantar batatas!

Eu ouço soluçar... Sampaio, és tu amigo?
Anda rir, foliar, anda daí comigo,
Anda daí connosco ao riso, à brincadeira.
Nicolau também tem por sua uma bandeira
Como em antigo tempo a Misericórdia usava,
Que protegia quem sob ela se encontrava.
— Pendão de Nicolau protege o que brincou
Se quiser recordar o tempo que passou!...
Sampaio, ó bom Sampaio, anda daí que eu parto,
Se to veda o Estatuto e o seu artigo quarto,
Não faças caso disso e entra resoluto
Que para tu entrares rasgamos o Estatuto.

Ó caixeiros, agora o tempo vai mudado.
Nicolau não quer ver o espectro do passado,
Nicolau não quer ver surgir a tirania.
Vós não podeis entrar na festa deste dia
Porque ela é nossa só, é festa de estudantes;
Mas apesar de tudo, agora, como dantes,
Não anda sobre vós pairando a ameaça
De irdes ao chafariz banhar na larga taça.
Não, ó caixeiros, não! Os tempos vão mudados,
Vós não vos metereis onde não sois chamados,
Como usáveis fazer em tempos muito antigos,
E nós seremos hoje uns íntimos amigos,
Seremos como irmãos seguindo a mesma estrada,
Olhos no mesmo Céu, em busca da Alvorada.

Tricaninhas gentis eu perco por sincero;
Talvez que não gosteis do que vos vou dizer,
Mas se vos falo assim é pelo que vos quero,
Ninguém pode ser réu, por muito bem-querer.
E se não sou leal naquilo que vos digo
Ceguinho seja eu por toda a minha vida,
E se depois da jura inda embirrais comigo,
Falai-me logo então, falai-me na saída.
O amor do estudante é coisa passageira,
Diz a cantiga já que apenas dura uma hora,
Se hoje o traz enleado uma linda trigueira
É uma loira, amanhã, aquela que namora.
A abelha anda a libar o mel de flor em flor,
Cada rosa que deixa, a deixa sem saudade,
Assim é tal e qual, tricanas, nosso amor,
O amor que vos oferece a nossa mocidade.
É o riso que dura apenas um instante
E vem depois a dar em lagrimas sem fim...
Não vos fieis em nós... Não vos fieis em mim...

Não nos levava assim depressa ao Paraíso,
A escada de Jacob erguida para Deus,
Como vós nos levais nas asas dum sorriso,
Nas asas de um olhar, brancas visões dos Céus!
Brancas visões do Céu! Damas da nossa terra,
Espíritos gentis, belezas sem rival,
Mais formosas que vós o mundo não encerra,
Que as mais formosas sois de todo o Portugal.
As mais formosas sois! Vêde como sereis,
Que em nosso Portugal toda a mulher é linda...
Vós devíeis de ser meigas noivas de reis
Se um estudante aqui não fosse mais ainda.
Como os ceguinhos vão ao longo dos caminhos
Conduzidos por mão que os livre dos escolhos,
Ai quem pudera, quem, assim como os ceguinhos,
Ir pela vossa mão e ver por vossos olhos.
Ir pela vossa mão assim como um menino,
Só em vós esperar, que sois a Esperança Nossa
E ter no grande livro — o livro do Destino —
A nossa pobre sina entrelaçada à vossa.
Ver pelo vosso olhar as coisas desta vida,
Tanto as que dão prazer como as que fazem dó,
E ter com vossa alma, a alma tão unida
Que nelas duas haja um pensamento só!
Adormecer, enfim, na graça deste mundo,
Adormecer em paz, na graça do Senhor,
Lendo depois de velho em vosso olhar profundo,
Eternamente moço o mesmo eterno amor!
Senhoras perdoai, se foi atrevimento...
Falam por minha boca os nossos corações
E o coração é assim, não tem regulamento...
— Quem pode regular a força dos vulcões?!

E agora vamos lá. Que Deus seja connosco!
Amigos para a frente! O hino é muito tosco,
A música é de caixa e bombo e de tambor,
Mas faça-se barulho e quanto mais melhor!
Amigos não cansar! Os ecos do zabumba,
Capazes de acordar um morto já na tumba,
Indo de vale em vale, indo de serra em serra,
Digam a Portugal, digam a toda a Terra
Que se interroga inquieta a perguntar — Que há?
—Que a festa a Nicolau é viva e viverá!
Laus Deo Nicolauque episcopo

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