O Palhaço
Apenas
Odília terminou, que uma avalanche de palhaços veio de roldão, entre risadas,
gritos estrídulos e berros, até ao meio da arena. Dir-se-ia um bando de
caricaturas loucas, no frenesi dos seus gestos, nos esgares das suas bocas, e
vestidos, uns de cetim todo negro, outros de cetim escarlate ou verde, calvos e
ossudos, dançaram uma farândola de epilepsia, para súbito se soltarem e caírem
com baques pícaros e rugidos. De repente imobilizaram-se, bateram os dentes,
com bocas rasgadas até às orelhas, só bocas, numa expressão de terror cómico,
para outra vez partirem na ronda macabra, redemoinharem com risos e berros...
Não
sei, porém, que triste melodia a música começou a tocar, que aflitiva tristeza
correu por todo o circo, agora petrificado, quando os criados terminaram por
cobrir de veludo um estrado de madeira. Em torno todos os clowns se sentaram, num
silêncio enorme, a revirarem os olhos de terror. Uma figurinha pálida de mulher
desceu então a rampa, com um triste, um cansado sorriso à flor dos lábios, e
dava, essa criatura atirada para o meio do circo a ferver, chapinhado de
borboletas de fogo, que dir-se-iam voarem em exames, perseguirem-se amorosas, caírem
exaustas sobre o carmim das paredes, não sei que impressão de sacrifício e de mágoa,
que punha, ao vê-la, os olhos rasos de lágrimas... Serena subiu para o meio do
sangue estagnado do estrado, onde era, na sua malha cor de malva como uma flor
atirada para uma mesa de autópsia. Os palhaços batiam, todos à roda, calvos e
hirtos, de olhares fixos nela, os dentes de medo, e sempre com o mesmo sorriso
resignado e meigo, se pôs a contorcer-se, em deslocações, que arrepiavam e
entristeciam... Por vezes parecia um aranhiço, as pernas torcidas, os braços
arredados, a cabeça a aparecer, pálida e abandonada, sorrindo sempre... Até que
no meio dos palhaços, que fugiram de roldão, ela foi arrebatada, envolta, como
uma castelã roubada por mendigos, numa noite de pesadelo e de loucura...
A
música então, solta, livre enfim, recomeçou um galope em que as notas tiniam
com brilhos e choques de espadas encontrando-se — e cavalos, em pêlo, negros e
raivosos, vieram escarvar a arena, montados por mulheres e homens do circo. Não
sei bem que velha, que encantadora alegoria, representava aquela perseguição, à
roda, sempre à roda, em que as raparigas defendiam flores, escondidas nos
seios, que os homens procuravam roubar com beijos...
Visto
de cima, donde o palhaço se instalara, o circo retomava o seu aspecto de delírio,
de redemoinho afundado, cavado pela tempestade no mar raivoso e onde apenas
cabeças sobrenadavam e braços faziam gestos de desespero e de raiva. Ao fundo a
galopada dos cavalos acelerava-se, dando tonturas, à roda, sempre à roda,
negros e em pêlo...
O
último bravo lançado, o tinir da rede acabada de estender, e os voadores
apareceram com sorrisos postiços, ele vestido todo de branco, moreno e forte,
ela, frágil e loura, toda vestida de negro. Treparam pela corda, marinharam até
ao alto e sentados cada um no seu trapézio, sorriram. A música aniquilara-se,
tomada de espanto e toda a
multidão
erguia, a cabeça, de olhar posto neles. Siwit suspendeu-se no trapézio, seguro pela curva das pernas os braços
estendidos, esperando. Manuela rasgou o silêncio com um grito estrídulo e
lançada pelo ar, o cabelo a esvoaçar, envolvendo-a em poeira luminosa, com reflexos
de oiro, veio cair-lhe, com um solavanco, nas mãos arrepeladas. Logo a música
rompeu num triunfo e as palmas caíram como marteladas.
Era
agora a sua vez. Desceu
as escadas, apegando-se ao corrimão, atravessou o corredor, entrevendo
nos camarins, pedaços de estofos,
gazes, pisceladas, notas
escarlates, leques de gás, uivos vermelhos de tecidos, cabeças
enfarinhadas, bocas rasgadas, colos,
músculos de pernas.-
(Continua)
RAUL BRANDÃO
O
Micróbio,
n.º 36, 28 de Março de 1895, pp. 86-87
0 Comentários