"O Palhaço", por Raul Brandão (2)


O Palhaço 


Apenas Odília terminou, que uma avalanche de palhaços veio de roldão, entre risadas, gritos estrídulos e berros, até ao meio da arena. Dir-se-ia um bando de caricaturas loucas, no frenesi dos seus gestos, nos esgares das suas bocas, e vestidos, uns de cetim todo negro, outros de cetim escarlate ou verde, calvos e ossudos, dançaram uma farândola de epilepsia, para súbito se soltarem e caírem com baques pícaros e rugidos. De repente imobilizaram-se, bateram os dentes, com bocas rasgadas até às orelhas, só bocas, numa expressão de terror cómico, para outra vez partirem na ronda macabra, redemoinharem com risos e berros...
Não sei, porém, que triste melodia a música começou a tocar, que aflitiva tristeza correu por todo o circo, agora petrificado, quando os criados terminaram por cobrir de veludo um estrado de madeira. Em torno todos os clowns se sentaram, num silêncio enorme, a revirarem os olhos de terror. Uma figurinha pálida de mulher desceu então a rampa, com um triste, um cansado sorriso à flor dos lábios, e dava, essa criatura atirada para o meio do circo a ferver, chapinhado de borboletas de fogo, que dir-se-iam voarem em exames, perseguirem-se amorosas, caírem exaustas sobre o carmim das paredes, não sei que impressão de sacrifício e de mágoa, que punha, ao vê-la, os olhos rasos de lágrimas... Serena subiu para o meio do sangue estagnado do estrado, onde era, na sua malha cor de malva como uma flor atirada para uma mesa de autópsia. Os palhaços batiam, todos à roda, calvos e hirtos, de olhares fixos nela, os dentes de medo, e sempre com o mesmo sorriso resignado e meigo, se pôs a contorcer-se, em deslocações, que arrepiavam e entristeciam... Por vezes parecia um aranhiço, as pernas torcidas, os braços arredados, a cabeça a aparecer, pálida e abandonada, sorrindo sempre... Até que no meio dos palhaços, que fugiram de roldão, ela foi arrebatada, envolta, como uma castelã roubada por mendigos, numa noite de pesadelo e de loucura...
A música então, solta, livre enfim, recomeçou um galope em que as notas tiniam com brilhos e choques de espadas encontrando-se — e cavalos, em pêlo, negros e raivosos, vieram escarvar a arena, montados por mulheres e homens do circo. Não sei bem que velha, que encantadora alegoria, representava aquela perseguição, à roda, sempre à roda, em que as raparigas defendiam flores, escondidas nos seios, que os homens procuravam roubar com beijos...
Visto de cima, donde o palhaço se instalara, o circo retomava o seu aspecto de delírio, de redemoinho afundado, cavado pela tempestade no mar raivoso e onde apenas cabeças sobrenadavam e braços faziam gestos de desespero e de raiva. Ao fundo a galopada dos cavalos acelerava-se, dando tonturas, à roda, sempre à roda, negros e em pêlo...
O último bravo lançado, o tinir da rede acabada de estender, e os voadores apareceram com sorrisos postiços, ele vestido todo de branco, moreno e forte, ela, frágil e loura, toda vestida de negro. Treparam pela corda, marinharam até ao alto e sentados cada um no seu trapézio, sorriram. A música aniquilara-se, tomada de espanto e toda a multidão erguia, a cabeça, de olhar posto neles. Siwit suspendeu-se no trapézio, seguro pela curva das pernas os braços estendidos, esperando. Manuela rasgou o silêncio com um grito estrídulo e lançada pelo ar, o cabelo a esvoaçar, envolvendo-a em poeira luminosa, com reflexos de oiro, veio cair-lhe, com um solavanco, nas mãos arrepeladas. Logo a música rompeu num triunfo e as palmas caíram como marteladas.
Era agora a sua vez. Desceu as escadas, apegando-se ao corrimão, atravessou o corredor, entrevendo nos camarins, pedaços de estofos, gazes, pisceladas, notas escarlates, leques de gás, uivos vermelhos de tecidos, cabeças enfarinhadas, bocas rasgadas, colos, músculos de pernas.-
(Continua)

RAUL BRANDÃO
O Micróbio, n.º 36, 28 de Março de 1895, pp. 86-87

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