Milagre de S. Nicolau |
O pregão de 1909 foi novamente
escrito por Delfim Guimarães. Recitou-o António José Gonçalves Dias. Da sua
leitura, resulta a sensação de que se anuncia o fim de um tempo. O pregão
cumpre o seu papel de anunciador da festa, mas é, acima de tudo, uma espécie de
pasquim com forte carga de crítica
aos dias que corriam.
No jornal Independente, de 27 de Novembro daquele
ano, lia-se:
O Bando, segundo
dizem, é este ano recitado por um académico não vimaranense, por se provar que
os nossos briosos conterrâneos falhos daqueles indispensáveis requisitos que
imortalizaram os velhos se viram na dura necessidade de dar a alternativa a
outros com peito forte, voz sonante e
figura agradável.
A chuva tirou brilho, mais
uma vez, a este número das Festas Nicolinas.
BANDO ESCOLÁSTICO
Recitado pelo académico
António José Gonçalves Dias
em
5 de Dezembro de 1909
O último!!
Quem sabe?
A mocidade
agora
É tão velha
de dor que, ao romper a aurora
Da Luz e do
Amor, da vida e da ilusão,
Já tem desfeito
em pranto o triste coração!
Como um senil
velhinho a trepidar com sono,
Ela reza um
rosário místico de Dores,
Espalhando a
tristeza, assim como o Outono
Espalha pelo
chão as pétalas das flores!
Cobrem-a,
com piedade, as santas capas pretas
Bordadas de
martírios, goivos e violetas,
E em noites
de Saudade e noites de Luar,
Sobre os
balcões das Donas de formoso olhar
As estende para melhor, à luz da fantasia,
Chorar suas
canções cm funda nostalgia!
A mocidade é
triste! É triste como o vento
Que,
atravessando a noite, passa em um lamento!
Já não tem
em sua alma as asas da Esperança
Para voar,
voar como uma pomba mansa
Ao éter azulino
longínquo r subtil,
Aonde o gozo expõe as suas graças mil!
A mocidade é
triste! E até Nicolau chora
Ao ver que se
transforma a deslumbrante aurora
De seus
filhos amados num sol-pôr de mágoa!!
Minerva, ai!
essa tem os olhos rasos de água
E murmura
dos céus, em sua voz suave:
— Um ano
ainda mais? O último! Quem sabe?
Oh loira
mocidade, oh mocidade em flor:
A vida é a
alegria, ai deixa esse torpor,
E vamos
espalhar por prados e campinas
Os beijos do
Amor, os risos das boninas,
Colhendo
frescas rosas,
Caçando
mariposas,
Inundando de
flores as capas e as batinas!
Escravos do
balcão, simpáticoa caixeiros,
A roda da
discórdia enfim que desandou
Para sermos
doravante amigos verdadeiros
E esquecer o
passado que nos separou
De que nos
serve a luta infrene e inextinguível,
Querermos
diluir com ódio o impossível
Se esta vida
é um riso lívido da morte?
De que nos
serve o orgulho extremamente forte
Se a vida é
uma ilusão que a um sopro se desfaz?
Não será
mais real a branquidão da paz?
A nossos
braços, pois, escrava mocidade,
E que este
abraço seja o pacto da amizade.
Um bravo à
denodada e nobre Comissão
Das Festas
Gualterianas cheias de esplendor!!
“Por Guimarães”avante,
é o nosso coração
Ao nobre
iniciador da “batalha de flores”!
Tricaninhas
garotas que passais avante
De rosto
levantado e olhar provocante
Trocando o
nosso amor por doido desamor;
Oh demónios
gentis que não meteis horror
Ao santo
mais santinho posto num altar;
Ora vamos lá ver se o nosso verbo amar
Vos esqueceu
ainda e ainda o declinais...
— Eu amo,
amas, ama, amamos, vós amais...
Basta
garotas, basta… Um B pela lição!...
Ai! desde já
contai com uma distinção
Se os examinadores,
oh filhas, formos nós!?...
Vós tendes
tanta graça, acreditai, só vós;
Com esse
olhar ardente e puro e feiticeiro...
— Olhar que
brota a luz serena desta vida —
Nos fazeis
ir até lá acima ao Castanheiro
E à velha Avenida.
Costureirinhas
lindas vinde a nossos braços
E trazei uma
agulha que possa cerzir
Os nossos
corações que os temos em pedaços
Desfeitos
pelo vosso angélico sorrir.
Que a vossa
boca seja a agulha desejada
E o retrós
que seja os seus beijos de mel
É o que mais
vos pedimos de alma ajoelhada.
Oh loiros Serafins da Lucas o Raquel…
. . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
Ai Rosinha,
Rosinha! isto só pelo demónio!...
Nós trazemos
cá dentro o testemunho erróneo,
E mais que
erróneo, falso em toda a sua essência,
A roer-nos sem
dó a nossa consciência
De dizermos,
Rosinha, no pregão transacto
Que tu
olhaste a espada do alferes ingrato!
Por essa
irreverente e treda falsidão.
Aquele
estrondo enorme e monstro e colossal
Rebentou qual
vulcão pouco além do Toural
E foi à
Madre Deus, ribombando nos ares
E, voltando
depois, chegou até Silvares!...
Tremeu a inteira
grei, enquanto que a Origem
Empunhando
áurea taça, e presa na vertigem
Dos arroubos
de Mário e gestos de Vieira
Gritara à
dita grei assim desta maneira;
— Numa
remota era, um tempos que lá vão,
— Era em que
nao bebia a água do Jordão —
Eu lia com
ardor os livros da ciência,
Sendo esta para
mim sublime omnipotência!!...
Mas de repente,
um dia, um génio portentoso
Espalhou na
cidade um foco luminoso
De eléctrica
batida em negas deslumbrantes,
E eu quedei-me
a olhar o génio por instantes
Para lhe
bradar destarte: — O teu poder profundo
Vale mais
que a ciência toda deste mundo!!!...
E a este
estrondo enorme a antiga Vimaranes,
Acordando do
Egas e do Afonso os manes,
Tremeu nos
alicerces roídos pelos anos,
Cantando seu
assombro aos priscos lusitanos!...
Baixinho
lhes mostrou calcada de terrores
O desleixo
que têm os sábios professores
Com as Escolas
Centrais criadas para a infância
Onde um
lente procede à justa sindicância!...
Contou-lhes
que da rua D, João l,
Daquele
grande tanque, o tanque sobranceiro
Que lavara
ao Zé Povo as pálidas misérias,
Sugaram toda
a água, toda sem canseiras,
Para
alimentar talvez as túrgidas artérias
Dalgum
ditoso campo sito nas traseiras!...
Contou-lhes com
cuidado e com toda a paciência
Para onde é
que ia o dinheiro da Beneficência!...
A seguir lhes
mostrou a deprimente insânia
Que corre no
asilo de Santa Estefânia,
Desrespeitando
a lei com suas leis daninhas,
Repelindo de
si às tenras criancinhas!...
Mostrou-lhes
o Maria, o bronco jornaleiro,
Que tendo
carta branca em um pasquim qualquer,
Sandices
vomitou, em prosa de barbeiro,
Contra esse
educador que se chamou Ferrer!...
Contou-lhes
a sorrir, com trinta mil enfeites,
A azeitada
questão chamada dos azeites,
Sustentada
entre um russo e um ramalho hostil
Que mesmo
assim dá landre ali em Creixomil!...
E a velha
Guimarães, tendo inda que mostrar,
Mas tendo
precisão do corpo descansar,
Pediu muita
desculpa aos priscos lusitanos
E foi-se a
descansar nos seus senis arcanos
Enquanto que
o octógono sem luz e passeios
Tinha um
aspecto negro — aspecto dos mais feios—!...
Desferindo a
alma aos nossos bandolins
Marchetados
de pérolas, ouros e marfins,
Senhoras
escutai as límpidas canções
Que passam a cantar os nossos corações;
— Senhoras
que por teima desses vossos olhos
Andam ou
olhos nossos neste mar de escolhos
Perdidos a
verter o pranto da amargura;
Senhoras que
excedeis em graça e formosura
A deslumbrante
Cypris — Mãe de deus Cupido —
A deusa por
quem Marte andou de amores perdido;
Senhoras que
excedeis as Driadas vestais
Cobertas de
soberbas pedras orientais:
Deitai por
piedade a esmola dum olhar
Aos nossos
tristes olhos pobres em amar!
Senhoras desta terra, antiga de nobreza,
Ai tende
piedade, ai tende piedade,
Dos nossos
tristes olhos, filhos da pobreza,
Com lágrimas
de dor e prantos de saudade
Que bem
ditas sereis, oh líricas Senhoras,
Por nossas almas
simples, ternas, sonhadoras!...
Senhoras
esmolai o nosso triste olhar
Com o branco
luar
Dos vossos,
lindos olhos
Que nos
fazem andar
Num grande
mar de escolhos!
Em ala,
Batalhões, de porte altivo e cru!...
Oh! almas de
Alexandre e espectros de Kossut:
Formar, formar
quadrado que ao fogo atroador
Há-de tremer
no Tejo o velho Adasmastor
E despertar
talvez da sua letal inércia!...
Para a frente
não tremer, oh Batalhões de Lisa,
Que lá baixo
em Camões o nosso rei da Grécia
A glória da
batalha, enfim nos profetiza?
Avante, Lutadores,
e à luta horripilante
Que trema Rodamonte,
o célebre gigante
Que Ariosto
cantou em versos geniais!
Oh Fúrias do
terror, oh Génios infernais,
Transformai
com as balas dessa artilharia
O mundo do
silêncio em forte berraria!
Dezembro de 1909
Delfim Guimarães
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