Milagre de Santo António, painel de azulejos da igreja de S. Francisco de GUimarães |
O milagre que
deu origem à Festa do Ladrão, que se celebrava na igreja de S. Francisco a cada
29 de Abril e que assinalava um milagre que terá ocorrido naquele dia do ano de
1710, e que já contámos aqui, não era, afinal, um milagre, mas sim dois: o castigo do ladrão e a imagem
de Santo António a jorrar água por um braço. Estes milagres, como muitos
outros, são contados por Boaventura Maciel
Aranha, de Braga, na sua obra Cuidados da
morte e descuidos da vida representados
nas vidas dos santos e santas, dos Varões ilustres em virtudes e Veneráveis
Servas de Deus, que como refulgentes astros, e luzidíssimos Planetas, esmaltaram
o Etéreo firmamento da Igreja Lusitana.
Aqui ficam:
De como castigou a um ladrão, que o queria
roubar, e suou
Na Vila de Guimarães intentou um Manuel
Dias, natural do Bispado de Coimbra profanar o sagrado da Capela, em que está
colocada uma formosa Imagem de Santo António, ou fosse para roubar-lhe: o que
tinha, ou para despojar a Igreja do precioso, como parece mais certo. Está pois
fundada a Igreja do Convento de S. Francisco de Guimarães de modo que, para a parte
do Norte, fica sepultada na terra em bastante altura, e por esta razão a fresta
da Capela de Santo António, que existe da mesma parte, não dista do chão mais
do que seis palmos. Pareceu ao ladrão fácil por esta fresta a investidura,
porque os ferros dela eram delgados, e consumidos da sua antiguidade; e dando mãos
ao empenho, despegou a rede, que defendia a vidraça: porém não prosseguiu,
porque a mesma rede, concorrendo superior impulso, o lançou por terra, e o pescou.
Por espaço de três varas se foi arrastando debaixo dela, e não pôde mais,
porque tinha uma perna fora de seu lugar, cujas dores o atormentavam com grande
excesso em competência dos assombros da própria confusão, vendo que o seu pecado
seria brevemente a todos manifestado. Desta sorte o acharam certas mulheres,
que persuadidas de que algum inimigo dele homem o havia posto naquele estado,
tocaram a campainha da Portaria, e acudindo os Religiosos acharam junto da rede
um martelo, e um bordão ferrado, que parecia mais instrumento de insultos, que
arrimo dos membros, que se lhe deviam supor debilitados na idade de setenta anos
que contava. Perguntado enfim o ladrão pelo sucesso, só respondia fora castigo
de Santo António. Examinado pelos Cirurgiões, lhe acharam a perna deslocada na
coxa, e a noz desta recolhida para a parte de dentro.
A este milagre se seguiu o portento de sair
do braço direito do Santo tal corrente de água, que molhando todas as petições,
e fitas, que as prendiam ao cordão, ensopou grande parte da toalha do altar, e
mais adiante correra, se logo a devoção de inumerável povo, que o presenciara,
não aproveitara nos lenços, e em outras prendas estes milagrosos orvalhos,
cujas Relíquias obravam prodígios. Tudo se autenticou juridicamente, e celebrou
o povo de Guimarães com luminárias, e festas ao glorioso Santo António; e só as
tristezas ficaram para o ladrão, que os Padres entregaram à Misericórdia para o
curarem no corpo, porém não se descuidaram em lhe procurarem também o remédio
da alma no decurso de dois meses que só viveu. Este milagre foi ocasião para
que crescesse a Fé nos Fiéis para com Santo António de Guimarães, de sorte, que
todos os anos concorria imenso povo a visitá-lo, e a procurar remédio nos seus
achaques, e em outras necessidades
espirituais, e corporais, e foram tantos os milagres, que fez naquele primeiro
ano, que se escreveram em um livro cento e oitenta e duas pessoas, a quem com
evidência prodigiosa socorreu; dando-lhes vida, estando já sem ela,
ou com opinião de defuntas.
Boaventura Maciel Aranha, Cuidados da morte e descuidos da vida, Oficina
de Francisco Borges de Sousa, Lisboa, 1761, tomo I, p. 53
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