Pregões a S. Nicolau (69): 1915

Milagre de S. Nicolau


No ano de 1915 voltaram a realizar-se as Festas Nicolinas, que, tal como no ano antecedente, não tiveram danças. O pregão voltou a ser escrito por Leão Martins e foi recitado por José Fernandes Lima, “académico do quinto ano”. Prossegue com a tradição dos pregões longos (com mais de duzentos versos) e é uma espécie de pasquim sobre os acontecimentos que andavam na ordem do dia. Não faltam críticas à governação da cidade, nem a referência à intentona monárquica de 27 de Agosto daquele ano (em que os monárquicos tentaram tomar de assalto o quartel de Infantaria 20, que estava no Proposto), nem uma referência à Grande Guerra, que já destruía a Europa.

Neste ano, a leitura do pregão foi muito prejudicada pela chuva impenitente.


PREGÃO ESCOLÁSTICO
Recitado em 5 de Dezembro de 1915, pelo académico do quinto ano:
José Fernandes Lima
Aos grandes entusiastas das tradicionais FESTAS NICOLINAS e meus amigos: P.e Gaspar da Costa Roriz e Jerónimo Sampaio, oferece
o Autor


A Mocidade de hoje imita ainda a antiga!
Para o sério uma risota e mais sua cantiga,
E folga e ri e canta e, troçando de tudo,
De ler nunca deixou os livros do estudo,
                                — Calhamaços demais
                                Sem folhas e estragados,
Que deram que fazer a nossos queridos pais,
                                — Nossos antepassados!

Estando o bacalhau a um preço desconforme,
Os ovos nem falar, a um preço grande, enorme,
Azeite sem batata, arroz parecendo goma
Que não há por aí indivíduo que o coma,
Dizia o bom do Zé, o lorpa, à boca cheia,
                                 (Coisa que a gente odeia!)
Que a Festa a Nicolau, — Festa de simpatia, —
Deixava de existir e que se não fazia.
Pois fez-se a nossa Festa, a Festa a Nicolau,
Embora tudo caro, embora tudo mau.

Que importa que o comércio em duas horas certas
Protestasse e fechasse as portas já abertas?
Importância nenhuma; o povo sendo ordeiro
Pode e deve pagar a mais algum dinheiro.

Que importa que as gentis, as madamas formosas,
Anjos celestiais, pombas e mariposas
Usem com altivez sapatos de veludo
Se o bruto do marido aboca tudo, tudo,
Dizendo, satisfeito: “E que me importa a mim
Se quero a minha esposa um anjo, um querubim?!...

Que importa que Vizela, orando a sua prece,
Com certa devoção, um concelho quisesse
Se tudo embalde foi — trabalho que impingiu ,—
                                Se nada conseguiu?

Que importa que a saibreira um homem conte morto
Se tudo está na mesma e continua torto?
Foi culpa nossa? Não? Foi serviço ilegal.
A Culpa de quem foi? — do empregado fiscal
                                E do senado, também,
Porque devia saber a gente que lá tem.

Que importa que as mulheres, às noites, agrupadas,
Cantem pobres canções, tristes, desafinadas:
Corina: o Mário foi-se... e ela, coitadinha.
Lá o foi encontrar à beira da cozinha,
                                Só, prostrado ao chão,
Descalço o pobre morto e já sem coração?”

Que importa que ao domingo (o caso até tem graça!)
De amadores, uma dúzia, além, na nossa praça,
Queira brincar com um touro e farpear, investir,
                                Se temos de nos rir,
                                Abrir bem as goelas,
Ao vê-los pelo chão, berrando das costelas?

Que importa que a batota ande desenfreada
Se a nossa autoridade em bolas não faz nada?
Que importa que a bogalha ande, ande... ao de redor
Se o olvido dá dinheiro e se faz um favor?

Que importa que não fosse (e isto desde Agosto!)
                                Um bom relógio posto,
Como alguém para aí havia-o prometido?
                                Tudo, tudo fingido!...

Que importa Guimarães um bispo receber
Com todo o aparato, o máximo prazer
Se no célebre dia (e como ele é mau!)
Correu o Afonso à pedra, a berros e a calhau?
O caso é ridículo e em tudo é banal!
E tudo junto foi: quaresma e carnaval!
A nossa autoridade agora, está mais mansa,
Ao povo permitindo em fazer a festança.
A peregrinação lá se realizou
Como em tempos doutrora e nada lhe faltou.
O povo de alegria e de contentamento
Assistiu a um milagre: um pobre dum sargento
Que nunca teve fé no Senhor, um ateu,
Perante o arcebispo em cristão se verteu!
Saíram procissões: a Ronda da Lapinha...
                                — Oh Chena: olha a galinha!

Que importa tudo caro? (e vós não morrereis!)
Com este meu pensar, com esta minha ideia:
Todos deveis beber, ao preço de dez réis,
— O leite desnatado, ali, sim, da Assembleia.
— Peitoral eficaz, por um preço bem bom,
E muito superior ao Ponche de Siam! —

Que importa que o caixeiro agora com o descanso
Na Festa não se meta e não queira brincar
Com a nobre estudantada e, se pacato e manso,
À noite se dirige à tuna, para tocar
A sério uma gaitada em grande instrumental?
                                Músicos sem rival:
Tocai, tocai, tocai com alma e devoção!
A vossa orquestra é boa, igual à de Milão!
                                Quem tem cabeça astuta
Põe a flauta na boca e, ao reger da batuta,
Enfim, deve tocar conforme é o compasso
Até enfraquecer o fígado e o baço.
Quem sabe organizar a Marcha Milanesa,
Com arte e com saber, causando admiração,
                                É justo, com franqueza,
Orquestra possuir igual à de Milão!...

Que importa que a Avenida esteja indecente
Se a Câmara não atende a nossa santa gente?
Mas isso é lá com ela, os senadores... deixá-los
E mal de quem sofrer se acaso tiver calos...
Que importa, oh! Sim, um posto Heróicos Verdilhões!
Que importa haver patrulha, à noite, dois a dois,
Em passo vagaroso, a assemelhar os bois?
Que vindes cá fazer? Vindes prender ladrões?
O roubo inda se faz e há-de progredir!...
E o bom gatuno passa a vida a rir...a rir...
                                Que importa que em Agosto,
No dia 27, entrassem ao quartel,
                                No sítio do Proposto?
Quem defender o rei está no seu papel!
Se julgam que lhes minto e não crêem em mim,
Escrevam para a Espanha, inquiram do Clarim,
                                Fugido da cidade,
Se defender um rei não é heroicidade!

Que importa ao português — Londres em Guimarães!
Por cada fato feito aumentar uns vinténs
                                Se a obra satisfaz?
Anda a gente bem posta e, então, qualquer rapaz
Sabendo-se aprumar, bota de polimento,
Cartola e colarinho, um janota elegante,
Por certo arranjará enlace, um casamento,
Embora um cidadão não passe dum pedante!

Que importa que um senado almejasse fazer
Figura e mais figura? (o caso é de morrer!)
Tomando a sua posse alegre e com regalo,
                                Se falhou o badalo?!
Não julguem que é mentira, a coisa é verdadeira:
Foi quando aqui caiu chuva de...Pimenteira.
E para um cidadão que queira ser sensato
                                O caso é caricato!
Até deu que falar! a cena foi tão bela...
                                — Óh tainha mãe: olhela!
Ó' sopeirinha, adeus! então eu não sou gente?
Não se lembra de mira? de mim que antigamente
                                Fui um seu namorado?
Não se lembra de mim? estou assim mudado
                                Para não me conhecer?
                                Diga, quero-o saber.
— Ai! bons tempos de outrora! o tempo que passou!
Quantos beijos na face?! e tudo terminou.
É caricato o amor, tirano e bem cruel
Embora o façam bom e doce como o mel!
— Vem cá, linda Pombinha, aqui, à minha beira!
                                — Sempre tens uma ceira!
— Vem cá, não és mulata, um beijo e terminou-se…
— Tens treta e és bonito oh! mas isso acabou-se
— Conta-me o teu segredo e nada de receio.
Que teimosia a tua! então? à noite, ceio!
Não te faças rogada e nada de demoras!
                                — Oh filho, aonde moras?
— Um beijo por favor, a mim, a um teu amigo.
                                — Mas isso é lá contrigo!
                                — Se o amor ainda dura...
                                Isso é com a mastura!

— E da greve renhida? o caso em que ficou?
                                — Que resultado deu?
— Hein! como? diz você que inda não terminou,
                                E que um homem morreu?
Que fecharam os portais sem dar satisfação
                                A uma Federação?
                                Foi ilegal, bem sei,
E procederam mal, abusaram da lei.

Damas da nossa terra, eleitas do Senhor:
Para vós mais um-sorriso! um ósculo de amor,
— Estímulo da afeição e da muita amizade
Que tendes consagrado à nobre mocidade!
Francamente vos digo, anjos de simpatia.
                                Como passar havia
Um qualquer estudante andando a cada passo
A decorar lições, relendo o calhamaço,
À noite, à frouxa luz, de frio a tiritar,
Sem um sorriso vosso, eleitas do Senhor?
A nossa vida então, será um caos, horror?
Sem damas tão gentis não podemos passar.
Por vós temos afecto e aqui bem o sentimos.
                                A vossas casas vimos,
Em festivo cortejo, entregar-vos maçãs,
Com licença dos pais e bondosas mamãs.

O mundo é bem fatal e anda em convulsões!
Granadas pelo ar, ribombos de canhões.
Dos grandes, colossais, soam horrivelmente,
Com um único fim: exterminar a gente
                                Zepelins, pelo espaço,
Vomitam, lá de cima, à toa, a cada passo,
                                As bombas infernais
                                Que, batidas no chão,
                                Incendeiam casais,
                                Matam um cidadão
Que, muito satisfeito, andava pela rua,
A fazer e a cantar versos coxos à lua!
No mar a mesma cena: os enormes navios
Retalham o oceano, andam aos desafios.
                                Em lutas só de horror!
E dizem os jornais: lá foi mais um vapor;
                                E um bonito barco
                                Lá foi, caiu ao charco !..

*
Rapazes, alto lá: como tudo anda em guerra
Preciso é fazer-se, aqui, na nossa terra,
                                 (Embora o tempo mau...)
A guerra instrumental do nosso Nicolau!
Rufai valentemente com força e com coragem
Prestai ao nosso Santo a pristua homenagem:
Baquetas de bom pau, braço desempenado,
Para cada um ficar artista consumado...
                                Portai-vos como heróis!
Quando a conta vier amanhã ou depois,
Os vossos queridos pais, com toda a gentileza
Das peles pagarão a mais essa despesa,
                                Pegando num fueiro,
Fazendo de vocês um mísero pandeiro!
Leão Martins

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