A Cidade
(continuação)
Das
suas conversas nocturnas com o Pita saía sempre com a cabeça cheia de
decorações e um sabor amargo à Vida-lama negra onde vestígios, espirros de oiro
tivessem sido esquecidos. A sua experiência do mal de viver dava-lhe à fantasia
rútila, recantos cheios de inédito e de amargura e era como se a sua alma fosse
sacudida diante dele de toda a poalha negra ou escarlate que a Vida lhe
deixara... Àquela hora só noctâmbulos esguios e com perfis rapaces quedavam
pelas esquinas — figuras que, ao pé dos restos de cartazes púrpura, de grandes
letras, faziam destaque e evocavam, perto da pompa e da grandeza, a miséria de
sofrer e do ruminar da quimera pela noite...
Assim
ele ficará de imaginação desperta, depois da conversa com o Pita e, febril, o
cérebro em lume, ia agora pelo bairro pobre e desdentado, a seguir ainda à sua
Fantasia. Em cada vulto que passava, procurava ver materializado o rasto de que
Pita lhe falara, como um manto que cada um arrastasse, invisível e tecido a
ideias e a sofrimentos...
—
Pois quê!... — lhe dissera o Pita — donde provém que as feiticeiras leiam no
passado do Homem ?...
Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a cauda de lama ou de
oiro, todo o seu passado, vestígios de ideias, crimes, horas de amargura e em
que se beijaram lábios da Mulher, por quem a se perde... Creia na minha
experiência da Vida!...
—
E para ver… para ver esse rasto, que cada um arrasta a nimbá-lo, luaroso e
ferido de lágrimas ? Serás tu Pita amigo, o Diabo, e queres em troca a minha
Alma?..
—
Não, não sou, com pena o digo, o Diabo... Quem me dera ser o Diabo, para ser
moço, ter todo o Oiro e todas as lindas mulheres da terra. Ai o pequename de
seios duros e lácteos como estátuas! o Oiro que dá o Poder, a Consideração
Pública, os sorrisos de lábios de papoila das moças e a riqueza dos Bancos!... Não sou o Diabo!
E
apontando com o seu dedo nodoso e descarnado para a Cidade, disse:
—
Vai sofrer, espremer da Vida a tua experiência. Deixa que te calquem o coração,
assiste ao despedaçar do teu sonho, à tua humilhação, e depois saberás….
Tomado
de respeito por tanto saber, com humildade se despediu:
—
Muito boas noites, senhor Pita !... Então não toma mais nada?
—
Não tomo. Podes-te ir embora. Boa noite...
Com a cabeça a escaldar lhe parecia agora ver realmente o que o Pita lhe afiançara existir... Cada criatura que passava arrastava consigo uma cauda — poalha luminosa, de oiro ou cinza, feita de luar ou de escarlate. Lentamente pôde distingui-los, classificá-los, conforme o manto régio ou pobre que traziam. E na noite havia-os que deixavam um grande rasto rútilo, como estrelas cadentes, onde gemiam ais de mágoa, prolongados como um som de viola que se parte. Míseros ressequidos e sacudidos pela Dor e pela miséria traziam uma cauda cor de cinza, com chuveiros de miríades de centelhas de lágrimas, e a Poetas nimbava-os uma poalha de luar e de oiro. Velhas ardidas eram envolvidas por uma atmosfera baça onde o Oiro do imortal Amor ainda luzia. E alguns deixavam atrás de si restos de mantos todos púrpura, que se iam perder na lama e no esquecimento; outros, criminosos decerto, caminham numa nuvem negra, onde pedaços sangrentos escorriam como punhaladas, e havia-os todos verdes como a inveja, de cambiantes infinitas, com abortos de ideias, fetos de concepções à tona. Muitos arrastavam-nos, enormes pela lama, despedaçavam-nos de encontro às esquinas e alguns procuravam deitá-los fora, não mais pensar num Passado tenebroso...
(continua)
Raul Brandão e Celso Hermínio (ilustrações).
O
Micróbio, n.º 31, 14 de Fevereiro de 1895, pp. 46-47
0 Comentários