Pregões a S. Nicolau (49): 1897

Brasão da cidade de Sint-Niklaas (Bélgica)


Após o ressurgimento das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, em 1895, o pregão deixou definitivamente de ser um documento intemporal, que poderia ser dito num ano ou noutro qualquer, nem que fosse mais de meio século depois, como aconteceu com o de 1822. Agora, é preciso conhecer o contexto em que foi escrito para se perceber minimamente o conteúdo do texto nicolino. Esta constatação é particularmente evidente no pregão de 1897, escrito por Bráulio Caldas e lido, pela segunda vez, por Jerónimo Sampaio, já na condição de “estudante veterano”. Neste pregão estão presentes referências a questões locais, nacionais e internacionais que então marcavam as discussões públicas.

Um exemplo: no preâmbulo do pregão (outra inovação introduzida em 1895), o seu autor designa-se com Anti-Kikero e, no pregão propriamente dito, dirige-se aos “apóstolos de Kikero”. Kikero foi uma expressão jocosa inventada por estudantes de Coimbra, aplicada a um grupo de filólogos que defendiam o ensino científico do Latim, o que implicava a adopção da pronúncia “normal”. A alcunha resultava do modo como, segundo o modelo que propunham, se passaria a dizer o nome do escritor Cícero: Kikero.

BANDO ESCOLÁSTICO
O S. Nicolau em Guimarães
RECITADO EM 5 DE DEZEMBRO DE 1897
POR
Jerónimo Ribeiro da Costa Sampaio

Eu D. ANTI-KIKERO CORNELIUS NEPOS QUINCTIUT HORATIUS FLACCUS (sucessor de D. Pantaleão Pancrácio Pepino Pita e Pegas), ESTUDANTE veterano; GENERAL em Chefe da Milícia de S. Nicolau em Guimarães; INIMIGO ortodoxo dos propagandistas heterodoxos de os festejos antiquíssimos simpático-familiares, civis e sociais da Briosa Academia Vimaranense; DESCENDENTE legítimo, mas em linha degenerada, dos entusiastas antepassados que tanto brilhantismo deram, nestes dias, a esta nobre terra; AÇOITE das más-línguas com fumos de Zoilos; POETA nefelibata dos Idílios da Avenida Nova; POLÍCIA secreto de todos os segredos públicos; GALOPIM eleitoral de todas as conveniências próprias e dos seus; OBSERVADOR reservado dos “reservados” do Quiquerelho; AGENTE de todas as altas e baixas de câmbio da Bolsa dos empréstimos e da miséria, etc., etc., etc.
Faço saber que ainda não morreram as grandiosas festas de S. Nicolau, mas antes continuam e hão-de continuar, a despeito dos despeitados, cumprindo-se as antigas disposições dos Estatutos de 1837, com todas as reformas possíveis e imagináveis em harmonia com o progresso, disposições com que me conformo.
Por isso ordeno a D. Jerónimo Sampaio, estudante aposentado, que deite fala nos seguintes termos:

Cesse a glória imortal do Grande Bonaparte
E trema na Alemanha o exército de Marte,
Na Grã-Bretanha a esquadra e na Rússia o Czar.
Que importa que a Turquia arrase Creta e o Mar
E que imporia que a Grécia em rasgos de heroísmo
Ao mundo faça ver que é forte e tem civismo?!
Ninguém fale sequer na guerra dos Canudos,
Na questão de Dreyfus, mistério para orelhudos.
            Cale-se de Mouzinho a fama gloriosa,
Enaltecendo a Pátria… ao longe… a desditosa,
Que, lutando, esfacela, as garras de um coveiro
Que tem faro de hiena e sangue de estrangeiro.
Quem vale é o estudante, é o verbo cintilante
Que incendeia o granito, ofusca o diamante!
Fazem-se desta massa os santos dos altares,
Dos filhos de Minerva os sábios, aos milhares,
Os Gamas, os Camões, Charcôts e outros sois!
Refundem-se neste aço os peitos dos heróis.

Nicolau, nosso amor, Nicolau, nosso bem,
Que a tua fama vá por esse mundo além.
Pois basta o nome teu, que a todos nos ensina
Para dar sota e az à gente pequenina.
Silêncio, que a um só gesto audaz da Academia,
No espaço treme o sol, na terra ninguém mia.

Rebeldes de uma figa… apóstolos de Kikero,
Que quiseste manchar o túmulo de Cícero,
Crismando os CC em KK, mudando à língua a voz,
Latim de ki-ke-ri-kis latim de co-ke-ro-kos!
Quereis saber um exemplo amigos do antigo – Plauditur?
AMIQUS KERTUS IN RE INKERTA KERNITUR!...
Que gregos que eles são! que teorias tolas!
É o mesmo que chamar kebolas às cebolas…
- Ó nomes de Virgílio ó Penates de Horácio!
Vinda à Lusa acudir ao pobre P.e Inácio...
- Adeus velho latim de barba amarelada,
De óculos a meio pau, fungando uma pitada.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ah! não! quem vence é Roma as hostes de Bizâncio.
Ainda há no país discípulos de Venâncio,
Mestre de Guimarães, de Guimarães glória,
Que ensinava cantando, ao som de palmatória.
Hora horae qui quae duod undecim duodecim…
A todos ensinando o que é saber latim.

Caixeirinhos... caluda! eu vejo-os, eu distingo-os...
Embora vós fecheis as lojas aos domingos
A Briosa não permite, a Briosa protesta;
Proíbe-o o Estatuto entrardes nesta festa.
E se os intrusos, enfim, se fazem figurões,
Desterrados irão para Garfe ou Castelões.
Se longe, ainda assim, algum reponta e berra
Irá com Balazar para o reino da Falperra,
E depois... se cantar, metendo o seu bedelho,
Vem logo o Adamastor cruzar o rio Selho.

Tricanas... rouxinóis dos nossos pátrios lares...
Saudai a nossa festa, em cantos populares...
Vós, que tão bem cantais, correi alegremente,
Brindando a Nicolau numa harmonia quente.
- Que nada vos detenha... a nossa porta é franca.
Entre nós não vos morde a tal formiga-branca.
- Maldita seja ela; - a todos amofina!
Vivendo do roer... é tudo para a menina!...
- Ide aos pentes de chifre e ponde-os em cavacos
Ou mandai-os catar e pentear macacos.
Deixai o sibilar da máquina infernal.
O tear que ensurdece e aos corações faz mal.
Tricanas, que sentis ao ver-nos tão contentes,
No peito a saltitar os corações ardentes.
Acompanhai-nos sempre, o dia é para gozar...
Vamos de braço dado... é sorte, se calhar...
Cantamos numa idílio aos menestréis de outrora
Que vós também mereceis que vos festeje agora.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A legendária estrada à penha é já real
Em breve vamos lá num carro triunfal.

Senhoras... eu não tenho o génio feiticeiro
De Dante, de Petrarca e Bernardim Ribeiro:
A minha lira é pobre e falta-me o engenho
Para vos poder cantar, como era o meu empenho.
Distintas sempre sois, fidalgas sois de raça,
Para cantar-vos bem a minha musa é escassa.
- Ó mães que acalentais os filhos, quando choram,
Mães, que lhes perdoais as culpas, quando imploram,
Vós, que tendes no peito, um íntimo sacrário,
Onde há maná do Céu e pranto de Calvário.
Consenti e sofrei que os filhos -uns rapazes –
Gozem a juventude; os tempos são fugazes.
- Esposas, laços de ouro e corações benditos,
Vossos maridos são estudantes proscritos
Da nossa antiga festa. O Estatuto é mau;
Mas que venham folgar, consente Nicolau.
- Donzelas, ó rivais da Aurora a despontar,
Epopeias do Azul com versos de luar.
- Peregrino, vagueio, errante, num tormento...
À busca do Ideal... num céu... entre açucenas...
E, ao ver-vos, libertei minha alma dessas penas...
O Eldourado é aqui… vós sois as deusas minhas,
No trono da Beleza, adoro-vos rainhas.

Guitarras que gemeis em lúbricas toadas
Suavíssimas canções, de uma ternura infinda
Mandai, no sol poente, as últimas baladas
Da saudade, do amor, em que este bando finda.
- Guitarras da boémia, eu sou o vosso aio,
Chorai quando eu morrer!... rezai por o Sampaio!..
- Membros da comissão que a festa abrilhantais,
Abraços, parabéns, talvez... para nunca mais!
- E vós acompanhai-me as ruas da cidade,
Nos zabumbas, tocando um hino à mocidade,
Altivos... sem tremer, num brado furibundo
Dizei a Guimarães que somos reis do mundo.
Bráulio Caldas

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