Brasão da cidade de Sint-Niklaas (Bélgica) |
Após o
ressurgimento das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, em 1895, o
pregão deixou definitivamente de ser um documento intemporal, que poderia ser
dito num ano ou noutro qualquer, nem que fosse mais de meio século depois, como
aconteceu com o de 1822. Agora, é preciso conhecer o contexto em que foi
escrito para se perceber minimamente o conteúdo do texto nicolino. Esta
constatação é particularmente evidente no pregão de 1897, escrito por Bráulio
Caldas e lido, pela segunda vez, por Jerónimo Sampaio, já na condição de
“estudante veterano”. Neste pregão estão presentes referências a questões
locais, nacionais e internacionais que então marcavam as discussões públicas.
Um exemplo: no preâmbulo
do pregão (outra inovação introduzida em 1895), o seu autor designa-se com
Anti-Kikero e, no pregão propriamente dito, dirige-se aos “apóstolos de Kikero”.
Kikero foi uma expressão jocosa inventada por estudantes de Coimbra, aplicada a
um grupo de filólogos que defendiam o ensino científico do Latim, o que
implicava a adopção da pronúncia “normal”. A alcunha resultava do modo como,
segundo o modelo que propunham, se passaria a dizer o nome do escritor Cícero:
Kikero.
BANDO ESCOLÁSTICO
O S. Nicolau em Guimarães
RECITADO EM 5 DE DEZEMBRO DE 1897
POR
Jerónimo Ribeiro da Costa Sampaio
Eu D.
ANTI-KIKERO CORNELIUS NEPOS QUINCTIUT HORATIUS FLACCUS (sucessor de D.
Pantaleão Pancrácio Pepino Pita e Pegas), ESTUDANTE veterano; GENERAL em Chefe
da Milícia de S. Nicolau em Guimarães; INIMIGO ortodoxo dos propagandistas
heterodoxos de os festejos antiquíssimos simpático-familiares, civis e sociais
da Briosa Academia Vimaranense; DESCENDENTE legítimo, mas em linha degenerada,
dos entusiastas antepassados que tanto brilhantismo deram, nestes dias, a esta
nobre terra; AÇOITE das más-línguas com fumos de Zoilos; POETA nefelibata dos
Idílios da Avenida Nova; POLÍCIA secreto de todos os segredos públicos; GALOPIM
eleitoral de todas as conveniências próprias e dos seus; OBSERVADOR reservado
dos “reservados” do Quiquerelho; AGENTE de todas as altas e baixas de câmbio da
Bolsa dos empréstimos e da miséria, etc., etc., etc.
Faço saber que ainda não morreram as
grandiosas festas de S. Nicolau, mas antes continuam e hão-de continuar, a
despeito dos despeitados, cumprindo-se as antigas disposições dos Estatutos de
1837, com todas as reformas possíveis e imagináveis em harmonia com o
progresso, disposições com que me conformo.
Por isso ordeno a D. Jerónimo Sampaio,
estudante aposentado, que deite fala nos seguintes termos:
Cesse a
glória imortal do Grande Bonaparte
E trema na
Alemanha o exército de Marte,
Na
Grã-Bretanha a esquadra e na Rússia o Czar.
Que importa
que a Turquia arrase Creta e o Mar
E que
imporia que a Grécia em rasgos de heroísmo
Ao mundo
faça ver que é forte e tem civismo?!
Ninguém fale
sequer na guerra dos Canudos,
Na questão
de Dreyfus, mistério para orelhudos.
Cale-se de Mouzinho a fama gloriosa,
Enaltecendo
a Pátria… ao longe… a desditosa,
Que,
lutando, esfacela, as garras de um coveiro
Que tem faro
de hiena e sangue de estrangeiro.
Quem vale é
o estudante, é o verbo cintilante
Que
incendeia o granito, ofusca o diamante!
Fazem-se
desta massa os santos dos altares,
Dos filhos
de Minerva os sábios, aos milhares,
Os Gamas, os
Camões, Charcôts e outros sois!
Refundem-se
neste aço os peitos dos heróis.
Nicolau,
nosso amor, Nicolau, nosso bem,
Que a tua
fama vá por esse mundo além.
Pois basta o
nome teu, que a todos nos ensina
Para dar
sota e az à gente pequenina.
Silêncio,
que a um só gesto audaz da Academia,
No espaço
treme o sol, na terra ninguém mia.
Rebeldes de
uma figa… apóstolos de Kikero,
Que quiseste
manchar o túmulo de Cícero,
Crismando os
CC em KK, mudando à língua a voz,
Latim de ki-ke-ri-kis latim de co-ke-ro-kos!
Quereis
saber um exemplo amigos do antigo – Plauditur?
AMIQUS KERTUS IN RE INKERTA KERNITUR!...
Que gregos
que eles são! que teorias tolas!
É o mesmo
que chamar kebolas às cebolas…
- Ó nomes de
Virgílio ó Penates de Horácio!
Vinda à Lusa
acudir ao pobre P.e Inácio...
- Adeus
velho latim de barba amarelada,
De óculos a
meio pau, fungando uma pitada.
. . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ah! não!
quem vence é Roma as hostes de Bizâncio.
Ainda há no
país discípulos de Venâncio,
Mestre de
Guimarães, de Guimarães glória,
Que ensinava
cantando, ao som de palmatória.
Hora horae qui quae duod undecim duodecim…
A todos
ensinando o que é saber latim.
Caixeirinhos...
caluda! eu vejo-os, eu distingo-os...
Embora vós fecheis as lojas aos domingos
A Briosa não
permite, a Briosa protesta;
Proíbe-o o
Estatuto entrardes nesta festa.
E se os
intrusos, enfim, se fazem figurões,
Desterrados
irão para Garfe ou Castelões.
Se longe,
ainda assim, algum reponta e berra
Irá com
Balazar para o reino da Falperra,
E depois...
se cantar, metendo o seu bedelho,
Vem logo o Adamastor cruzar o rio Selho.
Tricanas...
rouxinóis dos nossos pátrios lares...
Saudai a
nossa festa, em cantos populares...
Vós, que tão
bem cantais, correi alegremente,
Brindando a
Nicolau numa harmonia quente.
- Que nada
vos detenha... a nossa porta é franca.
Entre nós
não vos morde a tal formiga-branca.
- Maldita
seja ela; - a todos amofina!
Vivendo do
roer... é tudo para a menina!...
- Ide aos
pentes de chifre e ponde-os em cavacos
Ou mandai-os
catar e pentear macacos.
Deixai o
sibilar da máquina infernal.
O tear que
ensurdece e aos corações faz mal.
Tricanas,
que sentis ao ver-nos tão contentes,
No peito a
saltitar os corações ardentes.
Acompanhai-nos
sempre, o dia é para gozar...
Vamos de
braço dado... é sorte, se calhar...
Cantamos
numa idílio aos menestréis de outrora
Que vós
também mereceis que vos festeje agora.
. . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A legendária
estrada à penha é já real
Em breve
vamos lá num carro triunfal.
Senhoras...
eu não tenho o génio feiticeiro
De Dante, de
Petrarca e Bernardim Ribeiro:
A minha lira
é pobre e falta-me o engenho
Para vos
poder cantar, como era o meu empenho.
Distintas
sempre sois, fidalgas sois de raça,
Para
cantar-vos bem a minha musa é escassa.
- Ó mães que
acalentais os filhos, quando choram,
Mães, que
lhes perdoais as culpas, quando imploram,
Vós, que
tendes no peito, um íntimo sacrário,
Onde há maná
do Céu e pranto de Calvário.
Consenti e
sofrei que os filhos -uns rapazes –
Gozem a
juventude; os tempos são fugazes.
- Esposas,
laços de ouro e corações benditos,
Vossos
maridos são estudantes proscritos
Da nossa
antiga festa. O Estatuto é mau;
Mas que
venham folgar, consente Nicolau.
- Donzelas,
ó rivais da Aurora a despontar,
Epopeias do
Azul com versos de luar.
- Peregrino,
vagueio, errante, num tormento...
À busca do
Ideal... num céu... entre açucenas...
E, ao
ver-vos, libertei minha alma dessas penas...
O Eldourado
é aqui… vós sois as deusas minhas,
No trono da
Beleza, adoro-vos rainhas.
Guitarras
que gemeis em lúbricas toadas
Suavíssimas
canções, de uma ternura infinda
Mandai, no
sol poente, as últimas baladas
Da saudade,
do amor, em que este bando finda.
- Guitarras
da boémia, eu sou o vosso aio,
Chorai
quando eu morrer!... rezai por o Sampaio!..
- Membros da
comissão que a festa abrilhantais,
Abraços,
parabéns, talvez... para nunca mais!
- E vós
acompanhai-me as ruas da cidade,
Nos
zabumbas, tocando um hino à mocidade,
Altivos...
sem tremer, num brado furibundo
Dizei a
Guimarães que somos reis do mundo.
Bráulio Caldas
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