Página 327 da revista Pontos nos ii de 11 de Fevereiro de 1886. |
Na sua
edição de 11 de Fevereiro de 1886, a revista Pontos nos ii, de Rafael Bordalo Pinheiro, volta a abordar a
questão que então dominava as discussões políticas em Portugal, o conflito que
estalara entre Guimarães e Braga e que prosseguia em ritmo de escalada. Desta
vez, publica um longo poema satírico, composto por 44 quadras, assinado por um
tal Frei Lourenço de Braga. Os versos
satíricos de Frei Lourenço zurzem a indignação que então grassava entre os
vimaranenses. A certa altura, quase no fim, surgem dois versos premonitórios:
— Ó berço da monarquia,
Vais ser sepulcro do Fontes!
GUIMARÃES DESAGRADECIDO
ou
O ABUSO DA
ARQUEOLOGIA
EXPOSIÇÃO MÉTRICA
DE UMA NEVROSE MEDIEVAL
MCDLXXXVI
POR
Fr. Lourenço
de Braga
Não vás de
noite à Citânia,
(Nem já os sábios
lá vão!)
Pois anda nela
um fantasma,
Cumprindo
negra missão.
O velho
monge da serra
Diz ser o
celta Carnal,
Que à gente de
Guimarães
Jurou
vingança infernal;
Pois mãos
profanas tocaram
Na grande
Pedra Formosa!
E trinta sábios
vizinhos
Sobre ela
fizeram prosa!
Afirma ainda
um pasto
Que vira o
celta, a cantar,
Abrir escura
caverna,
À branca luz
do luar;
E logo dela
saírem
Os tais micróbios,
que dão
A triste
monomania
Da negra
perseguição.
Dizia o
canto : — Vingança !
“Ó feras de
vinte patas!
“Tornai
depressa esses sábios,
“Sem
excepção, nervopatas!
Depois de
leres o que segue,
Dirás, ó pio
leitor,
Se tinham,
ou não, razão
O velho
monge e o pastor.
Dias depois.
Guimarães
Acorda todo
guerreiro.
Belona fica
de esperanças,
E Marte mui
prazenteiro.
E no Dom Afonso
Henriques
O Divorçons volta à cena;
Há vivas mil
a Naquet,
Há mil
rugidos de hiena.
Enchem as
altas cadeiras
Daquele
circo romano
Tipos de
raça normanda,
Gentes de
aspecto inumano;
Rudes barões
das cruzadas,
Feros
armeiros da terra,
Velhos
burgraves de Basto,
Que moram
longe, na serra;
Pajens, donzéis,
infanções,
Burgueses,
padres e povo;
Todos de luto
vestidos,
E todos de
chapéu novo!
Que os
velhos feltros de Braga
(Feltros sem
lei e sem fé)
Tinham, há
tempos, sofrido
Tratos de
negra polé!
No palco,
lonas pintadas
Com cenas da
meia-idade;
Ao fundo,
triste, uma sombra
Que faz
lembrar a cidade!
Antes de abrir
a sessão,
O Comité de salut
Enche de
sangue um tinteiro,
Com gestos
de Pedro Cru.
E vai,
depois, majestoso,
Coberto de
verdes loiros,
Tomar
assento em cochins.
De verdes,
cheirosos, coiros.
Passou-se
logo à leitura
Dum documento
solene
Era uma
carta-homília
Do bispo de
Mitilene:
Aos bons
Fidalgos, meus Primos,
Dizia o tal
pergaminho;
“A vós, arraia-miúda,
“Que fabricais
ferro e linho;
“Saúde, paz
e concórdia,
“E mais juízo
e pachorra;
“Pois, em
verdade, vos digo
“Que sois
espelho de Andorra.
“Mover tal guerra
aos de Braga
“Por causa
duma assuada!...
“Se estais
isentos de culpa,
“Dai-lhe a
primeira pedrada...
“Pois não
sofreu Margaride
“(Quer ele
queira, ou não queira)
“De vós afrontas
iguais,
“Por causa duma
oliveira?!
“Dizei
depressa: — peccavi —
Dizei; que neste
certâmen
“Só armas
santas se usaram.
“Sancta, sanctorumque. Ámen.
“Armas, que
almas devotas
“Opor-se
somente devam:
“Às armas de
S. Francisco
“As armas de
Santo Estêvão.”
Um coro de
maldições
Rompeu os
brandos conselhos;
Os moços... parecem
tigres,
Parecem
moços os velhos!
Tais, os
bretões sequiosos,
Sentindo água
no vinho;
Tais, famulentos
judeus,
Mordendo
gordo toucinho!
Ouviu-se,
então, entre cenas,
Roncar
medonho trovão;
E logo por
entre chamas,
Abriu-se
fundo alçapão.
E dele, novo
Lusbel,
O
Negro-Melro, danado,
Surgiu, de
tanga vistosa,
E penas mil
no toucado.
— Eureka!
diz: “encontrei
“Um meio
muito engenhoso,
“De Braga
ficar contente,
“E Guimarães
jubiloso.
“Que o berço
da monarquia,
“Cercado de
verdes montes,
“Forme por si
um distrito,
“Um grão-ducado
pró Fontes.
“Vereis
então nesse paço,
“Sem folgo de
monarquia,
“Brilhar,
gentil, majestoso,
“0 Rei António
Maria.
“Ele há-de
dar-nos um bispo
“Para esta
Sé sem pastor.
“Talvez o
Guerra Junqueiro
“Tenhamos
por Dom Prior.
“Um rio,
grande, formoso,
“Há-de essa
ponte banhar,
“Com lindos
peixes vermelhos,
Tendo um
Pimpão a nadar.
“Será
composto o senado
“Por toda a
tribo Minotes,
“Que o
cidadão de Pombeiro
“Só pensa
nos sans-cullotes.
“O castelão
de Lindoso
“Talvez
encontre afinal,
“Nas fundas
trevas dum cano
“A pedra filosofal.
“E no jardim
do Toural,
“Para que
reste memória,
“O hábil
Castelo Branco
“Terá estátua
marmórea.
“Que este hábil
Castelo Branco
“— Não vá
haver confusão —
“Nem é rival
do Antunes
“Nem do Palmela
é irmão.
“Na velha
torre feudal
“—São praxes
de El-Rei Pepino—
“Hão-de
ficar em reféns
“O Missas e
Constantino.
“E disto
ninguém suspeite,
“Nem vá
tomar-mo a mal;
“Paulino vai
para a Falperra
“Com a nova guarda-fiscal.
“Por esta
tanga cabinda,
“Herança dum
meu passado,
“Eu juro ser
esta a traça
“De tudo
ficar sanado.
“Mas, antes
que tal suceda,
“As barbas
não mais cortemos,
“Embora
morram barbeiros,
“Todos à uma
juremos.”
Sumiu-se,
bradando todos
Com vozes de
mastodontes:
— Ó berço da
monarquia,
Vais ser sepulcro
do Fontes!
Não mais se
faz uma barba
Em toda aquela
cidade!
São todos
porta-machados.
Uns monstros
de puberdade!
Enfim, quem
quer pode ver
(É triste e
custa dizê-lo):
As rosas de
Margaride
Cobertas de
negro pelo!
Por isso, se
tu não queres
Viver em tal
confusão,
Não voltes
mais à Citânia.
Que nem os sábios
lá vão.
Pontos nos
ii, 11 de Fevereiro de 1886, p. 327
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