Diogo de Macedo escreve sobre António de Azevedo

António de Azevedo


A biografia de Diogo de Macedo, escultor e crítico de arte, confunde-se com a do António de Azevedo, escultor que está bem representado nas ruas e largos de Guimarães. Nasceram no mesmo ano e na mesma terra; frequentaram as mesmas escolas; concluíram o curso de Escultura nas Belas-Artes do Porto ao mesmo tempo e ambos cumpriram o seu destino de mergulhar nas “labaredas de Paris”. Um deles chegou a director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, o outro, Azevedo, apesar da sua cultura e do seu talento, não passou de director da Escola Industrial de Guimarães.

Em 1939, Diogo de Macedo publicou na revista Ilustração um texto sobre o seu amigo de infância e camarada de artes, que seu havia recolhido “ao mosteiro humilde da nossa província, a ensinar operários no difícil jeito dos desenhos e a modelar algumas obras que o pequeno estímulo de tão pequenos meios lhe sugerissem”.


A obra do escultor António de Azevedo
O artista de valor, tão mal reconhecido

A província é um saco rico onde se escondem muitos artistas que as Escolas Industriais atraíram, não fossem os atropelos da luta pelo pão nosso de cada dia, atirá-los para a má-língua dos botequins e das esquinas das capitais a aumentar o espectáculo da preguiça ou do desemprego profissional. A província acolhe-os, retém as suas possibilidades de acção e também egoisticamente aferrolha os sonhos, os desejos e o talento desses peregrinos desprotegidos do elogio na imprensa. Um desses artistas de grande e delicada sensibilidade, é o escultor António de Azevedo, que, depois dum curso brilhante feito na Escola de Belas Artes do Porto, e duns anos de apuramento culto da sua arte, passados nos museus e nas escolas de Paris, havendo calcorreado galerias da Bélgica e da Alemanha para melhor alcançar quanto a sua ilusão requeria, teve de recolher ao mosteiro humilde da nossa província, a ensinar operários no difícil jeito dos desenhos e a modelar algumas obras que o pequeno estímulo de tão pequenos meios lhe sugerissem.

Busto de Senhora

António de Azevedo, artista culto e civilizado, com percepções preciosas para brilhantismos na exploração das formas e cheio de capacidades técnicas para a construção de obras de vulto, vive há alguns anos retirado na cidade de Guimarães, onde, apesar de tudo quanto uma pena não pode dizer sem passar por injusta ou traiçoeira, tem conseguido erguer alguns monumentos e talhar alguns retratos em pedra. Um destes últimos foi o busto do Senhor Presidente da República que, por boa sorte do destino, a Câmara Municipal de Lourenço Marques soube adquirir. Os portugueses de África, pela sua melhoria de qualidades de actividade e de delicada compreensão dos valores artísticos que por cá se quedam encobertos aos olhos dos metropolitanos, são credores de muita gratidão destes mesmos artistas. Pela minha parte não esquecerei nunca as exemplares atenções com que me trataram um dia, ao procurarem-me para lhes enviar a figura da Justiça, que o Tribunal de Lourenço Marques possui. Agora com as obras que o meu camarada de há trinta anos lhes enviou, para a 11.ª Exposição de Arte em Moçambique, por certo vão reconhecer o quanto lhes vale a pena ter orgulho nos artistas de Portugal. São dois bustos femininos, talhados com doçuras de expressão e de formas, dignos dum bom museu da Europa, e portanto, igualmente dignos de figurarem em galerias do ultra-mar. Admirei-os antes da sua partida e Deus sabe quanto os invejei, embora há muito esteja habituado a encantar-me com os trabalhos de apurado gosto deste colega.
Palmira (mármore)
Nascemos na mesma aldeia e no mesmo ano. Fizemos os cursos nas mesmas escolas e ao mesmo tempo terminámos o de escultura, seguindo a par para as labaredas queridas de Paris. Ali os nossos sonhos se desenvolveram em paralelo e numa camaradagem que se firmou para sempre. Os nossos temperamentos desiguais tomaram as direcções que os sangues impõem a quem não transige com modas ou interesses sem decoro. António de Azevedo é sobretudo um deslumbrado da luz sobre vida, um delicado pesquisador de formas meigas e um estilista na composição das estátuas que idealiza. A sua galeria de retratos tem a macieza bondosa de quem colhe nos modelos, especialmente, a beleza calma que a luz adoça e apaixona os cinzéis de quem a colhe e transfigura em sínteses puras. As figuras que modela, esbeltas, graciosas e decorativas, requerem jardins, silêncios de lagos ou mistérios de campos-santos. Em Guimarães deixou gravadas algumas destas composições, ora em cemitérios, ora em jardins de sabor antigo e íntimo. O monumento a Martins Sarmento, de discreta arquitectura. é um resultado estético das suas comoções plásticas, assim como a Fonte do Sátiro. O grupo Dançarinas, aqui reproduzidos, que é, sobremaneira, uma combinação de ritmos, à maneira de Joseph Bernard, escultor francês, que sempre impressionou o nosso artista. Todavia os mármores reproduzindo cabeças de raparigas simples, tipos populares que ele elegantiza e até intelectualiza na sua expressão total, seriam suficientes documentos para firmar um nome com segurança, se Portugal não fosse um país descuidado com os seus autênticos valores, que deixa estiolar pelos buracos das províncias e raramente coloca nos patamares da justiça, ocupados por outros mais astuciosos sem que ninguém se aperceba do logro ou tenha coragem para os deslocar e pôr em seu devido lugar.
Busto de rapariga
António de Azevedo multiplica-se constantemente. Dirige uma escola, importante, ensina desenho a inúmeros operários, é arquitecto, cultiva a arqueologia artística, faz parte de comissões de arte e de ensino, e nunca deixa de esculpir, embora lhe sejam raros os ensejos e as emulações para a criação da obra que sonhou. Além dos bustos femininos a que me referi, é também autor dos retratos dos pintores António Carneiro e Joaquim Lopes, do médico Magalhães Lemos, do industrial Álvaro Miranda e ainda doutros mais, retratos admiráveis onde a transmissão psicológica é notável, podendo ser contado entre os melhores retratistas portugueses. Esta capacidade desenvolvida de acção e de aptidões é uma característica civilizada dos artistas modernos, que por causas dinâmicas da vida actual, por necessidade de relações entre os problemas de espírito que se ligam entre si para alcances de boa harmonia e por desenvolvimento lógico de cultura estética que os períodos de renovação exigem, torna muito mais elástica e universal, não só a sensibilidade mas também a fortuna de conhecimentos profissionais dos plásticos, cuja ansiedade, naturalmente, deseja meios febris para expansão dos ideais.

São estes, em todos os verdadeiros artistas, mais ou menos desassossegados, ainda que sólidos nas raízes donde brotaram; de aí a aparente inconstância das obras de cada um, que quanto mais divergem na forma, maiores aplausos merecem. Em bloco é que as gerações devem ser julgadas, resultando mais viva a época quanto mais variada for a produção de cada indivíduo. António de Azevedo é um dos artistas mais definidos nesta acção de conjunto, que em breve futuro será apreciada com diferente justiça daquela que ultimamente se vê zonza para resolver as sentenças.

Dançarinas
Quando a Portugal chegar a moda editorial, já há muito usada em terras estrangeiras, de se reunirem em álbum as reproduções das obras dos escultores portugueses, não por publicidade individual, mas para propaganda dos valores nacionais, que bem mais a merecem que os negócios e as indústrias sem originalidade apregoadas além fronteiras, e a boa crítica escolher os nomes daqueles que devem formar a vanguarda dos criadores de beleza, António de Azevedo fará parte das primeiras filas, como um dos mais representativos e dos mais seguros na sua personalidade. Imaginário de subtil visão e com delicadezas de gosto em tudo quanto produz, marcará uma corrente particular duma estética iniciada no século XVII, elegante sem ser fútil, fina sem ser frágil, meiga sem ser sentimental, digna portanto de ingressar na parte tradicional e decorativa dos classicismos, a que a sua maneira pessoal deu uma expressão moderna, sem extravagâncias nem atrevimentos apressados.
A Fonte do Sátiro
A escultura moderna em Portugal tem duas correntes definidas, que a França e a Itália influenciaram, se não directamente, pelo menos através dos tempos passados. Ambas elas andaram adornando as catedrais e glorificaram os heróis. Nenhuma, apesar dos desejos evidentes nas suas estruturas, colheu a forma dos gregos, porque a índole dos artistas portugueses é refratária aos paganismos simbólicos e à secura das ordens olímpicas. Soares dos Reis e Simões de Almeida na sua obra colhida entre as ruínas e os museus de arte grega, sondaram-lhe os encantos, mas deram outro sentido de intimidade religiosa às formas ali apreendidas. Foi sobretudo o gosto românico, transfigurado séculos depois pelas liberalidades do barroco, que deram estilo próprio à escultura portuguesa, não contando com as tormentas gótico-manuelino incidentais e com as assimilações do Renascimento, que denunciam fortemente as nossas possibilidades de adaptação, revelando embora ao mesmo tempo os protestos do feitio nacional. Actualmente a escultura portuguesa — à parte os decorativismos exigidos pela arquitectura moderna que a movimenta em descritivos anedóticos e convencionais, — guia-se em duas direcções muito claras: — dum lado o classicismo austero, discreto e estático; e do outro, o movimento naturalista, lírico e de expressões mais febris. Ambas se apoiam em tradições dos terrenos onde floriram com brilho, e ambas procuram uma forma concreta de nacionalidade. A História procura orientar com igual interesse estas paixões, e deve ser a arte quem um dia firmará a verdade mais perfeita da raça que glorifica. António de Azevedo pertence à segunda corrente, a mais numerosa de cultores, que estimam na graça um dom de vida, que a outra corrente repudia por sonhar com a eternidade. Existe uma relativa modéstia neste desejo de estatuar os sentimentos humanos e as suas fatais agitações exteriores, que apesar de nos acusarem lá fora como um "povo de suicidas”, prova naturalmente com documentos tão irrefutáveis, o erro sistemático das opiniões meramente literárias. Os nossos cemitérios, a par dos ciprestes estão cheios de roseiras... A nossa escultura — e a de António de Azevedo é um lindo exemplo — também está cheia de graça e desejosa de cantigas de amor.

É, pois, com grande alegria que hoje recordo a obra deste escultor mal reconhecido, estampando aqui algumas das suas esculturas mais notáveis.

Diogo de Macedo.
Ilustração, n.º 324, Lisboa, 1939, pp. 20-21

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