Retrato de Brito Aranha, publicado no tomo 10.º do Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, a que João de Meira se refere no seu texto. |
A
Revista A Memória começou a
publicar-se em Guimarães no dia 16 de Setembro de 1900. Apresentava-se como literária,
no cabeçalho aparecia Domingos José da Silva como responsável e teve uma curta
existência, terminando com o n.º 31, em 14 de Abril do ano seguinte.
No
primeiro número, aparece um texto, cuja publicação
se concluiria no número seguinte, assinado com um pseudónimo (Homo)
utilizado por João de Meira, o autor do texto, à altura com 19 anos de idade. Nele,
dirigindo-se ao responsável da nova publicação e com o propósito de elucidação
dos leitores, o jovem Meira descreve como aprendera o que era a linha de um jornal. Vale a pena ler.
O personagem que aparece identificado no texto como B. A. é Brito
Aranha, o continuador do Dicionário Bibliográfico
de Inocêncio Francisco da Silva. O jornal de Lisboa onde o narrador se dirige é
o Diário de Notícias, onde Brito Aranha desempenhou as funções de redactor
principal, após a morte do seu fundador, Eduardo Coelho. A biografia de
Francisco Martins Sarmento que João de Meira pretendia publicar vinha a
propósito da grande homenagem pública a Sarmento que estava a ser preparada em
Guimarães e que aconteceu no dia 11 de Março de 1900.
Uma
Linha…
(página
das minhas “memórias”)
Dizem-me que há-de chamar-se A Memória a nova folha para a qual estou encadeando estes dizeres à
sombra de uma parreira, junto a uma bica de água que murmura e um campo de
milho de onde sobe o doce perfume do pendão.
Não me ocorre o que da memória diz o filósofo Costa e
Almeida por cujo douto volume aprendi a magra filosofia dos liceus; mas sei
muito bem que quando no mundo ainda havia deuses a loura Memória foi amada de
Júpiter — o tonante — (o tipógrafo pode compor com u se entender que o filho
de Saturno, pelo que fez a inúmeras deusas, antes merece o nome de tunante.
Destes divinos amores nasceram as Musas que decerto serão
propícias à gazeta que no título invoca o nome de sua mãe.
A mim, protege-me tu, austera Clio, deusa de olhar negro e
profundo, coroada de louro que presides à história e à tradição.
Protege-me hoje que das minhas — Memórias — vou arrancar uma página para elucidar muitos sobre o que
seja a linha de um jornal.
Num periódico de Guimarães publiquei já, o que no caderno
achei escrito sobre a morte de Martins Sarmento; a página de hoje, bem
diferente prende-se todavia ao mesmo assunto.
*
Alguém que me honra com a sua amizade imaginando que eu,
vimaranense mais ou menos lido em velhos e novos livros, poderia escrever uma
ligeira biografia de Sarmento com mais exactidão do que os jornalistas da
capital, para quem a existência de Sarmento era tão problemática como a do
Velocino de ouro, ofereceu-me uma carta de apresentação para o redactor
principal de um dos principais diários lisbonenses do qual o meu amigo era
distinto correspondente.
Isto foi em fins de Fevereiro.
Em um de Março, às oito da noite procurei na redacção o
jornalista, atravessando essa mal alumiada rua dos Calafates a que o jornal
emprestou a moderna denominação.
— No primeiro andar, explicou-me um empregado da secção de
anúncios.
Ia subir palpando no bolso a carta, não fosse tê-la perdido,
quando num sujeito que descia, de chapéu alto, cabeleira branca, bigode e pera
more militum, me pareceu reconhecer quem procurava, pela indecisa recordação de
um retrato entrevisto na primeira página de um dicionário bibliográfico.
— É V. Exa. o snr. B. A.?
— Sou sim.
— Trago esta carta para V. Exa.
À luz do globo branco que iluminava a escada e tinha em
letras pretas o título do jornal, foi-a lendo pausadamente por sobre os óculos,
e depois, tendo voltado para mim o olhar miúdo, perguntou:
— Então o senhor que deseja?
Expliquei: Fazer um artigo, uma pequena biografia de Martins
Sarmento para o que tenho os necessários elementos, dizia-lhe:
— V. Exa. sabe, fazem-se em Guimarães as festas onde o seu
nome é bem conhecido e o seu valor tão justamente apreciado, quanto pode sê-lo
por leigos na ciência. O meu desejo, o do nosso comum amigo, que me envia a V.
Exa. e o de todos os vimaranenses era que esse nome ilustre soasse bem alto
pelo país inteiro; para isso contámos com o jornal de V. Exa.
Alguém entrara vestindo um comprido agasalho de veludo e
agitando distraidamente na mão um stick de cana.
Tinha o cabelo grisalho e usava lunetas.
— Este moço, disse-lhe B. A., indicando-me com um gesto de
mão, traz elementos para escrever a biografia de Sarmento.
E ele, um poeta cujo livro de versos pouco depois o diário
ofertou como brinde aos assinantes, curvou-se num gesto de inteira aquiescência
murmurando:
— Como o snr. B. A. quiser.
E novamente com a bengala fazia menção de traçar arabescos
no pavimento do mosaico enquanto o outro me dizia:
— Pois então traga a biografia ou apontamentos para ela se
fazer.
Eu murmurei apenas:
— Sim senhor.
Ia retirar-me quando ele acrescentou ainda:
— Estou aqui das onze às duas todos os dias. Venha no dia
quatro ou cinco.
Fui a seis. No primeiro andar um criado de suíças brancas
indicou-me o gabinete. ati no vidro fosco da porta e o próprio B. veio abrir
convidando-me a entrar na saleta estreita bastante atrancada por cadeiras e uma
secretária baixa de muitas gavetas.
Entreguei-lhe o artigo que ele se pôs a ler sentado, com
demorada atenção, enquanto eu examinava os quadros pendentes das paredes: ao
fundo, próximo da janela, Camões na gruta de Macau, na minha frente grande
cópia de fototípias de um homem antigo em atitudes rígidas de estátua que mo
pareceu Afonso de Albuquerque; havia também cromolitografias, que deviam ser
brindes do jornal.
B. A. ia já no fim da segunda tira, voltou-se e pousando em
mim os olhos pequenos e franzidos por detrás dos óculos, observou-me:
— Isto tem de ser alterado.
Leu o período que dizia: Sarmento
secundado por um grupo de amigos atacou, no jornal fundado para isso, o Juiz Seco
que recebia emolumentos indevidos e a seu bel-prazer insultava e suspendia
advogados.
Depois, tomando o primeiro linguado voltado sobre a
secretária, acrescentou:
— E isto também.
Era a história das tagantadas públicas no padre Clemente de
Melo que injustamente criticara o arqueólogo quando ele ainda não era mais do
que poeta.
— Não se pode, explicava, dizer que um juiz recebe
emolumentos que lhe não pertencem. É um insulto grave! Gravíssimo! nem é
conveniente contar assim um caso de chicotadas.
Eu objectei que os factos estavam narrados em livros e
jornais, que eram do domínio público, que de mais a mais os indivíduos
mencionados estavam decerto mortos.
Ele duramente retorquiu dizendo que o desacato era ainda
maior feito a defuntos que em virtude de essa falsa posição se mão podiam
defender ou vingar, e juntou, fazendo com a mão um largo gesto:
— A linha do jornal não o permite!
Pelo solene modo com que as últimas palavras foram ditas,
compreendi que essa coisa para mim desconhecida a que chamavam linha devia ser
augusta e intangível, e então, tendo recalcado o meu despeito, respondi;
— V. Exa. conhece essa linha que diz. Eu desconheço-a
totalmente. V. Exa. alterará como entender.
Depois enquanto ele continuava a ler, a tal linha pareceu-me
uma corda que municiava fortemente as ideias. Tive a tentação estúpida de
perguntar se modernamente havia uma literatura de linha, como há tropa de linha
e como já tinha havido literatura de cordel.
E reflexionando maduramente quis-me parecer que se a
literatura era de linha, lançada ao papel não devia dar jornais, mas sim
novelos.
B. A., que tinha achado no meu escrito menção do roubo feito
à Sociedade M. Sarmento, interrompeu-me estas considerações, perguntando:—
Então nunca se descobriu o ladrão?
— Nunca, respondi.
Acabou de ler e disse:
— Está bem. Deve sair?
— No dia 11 que é o das festas. Escreveu no verso do último
linguado: para o dia e voltando-se: o nosso amigo já mandou um extenso
telegrama. Leu?
Li, respondi despedindo-me.
E pela estreita rua, onde às janelas assomavam mulheres
pinturiladas de carmins em trajos pelintramente espalhafatosos, segui, para o
meu quarto andar, monologando:
— Afinal a tal linha é linhaça emoliente que se aplica aos
artigos.
*
Cinco dias depois, ao almoço, enquanto aguardava o bife
cárneo, desdobrei o jornal.
Lá estava a biografia, mas quão diferente do que tinha sido!
Transformada, errada, refundida, para ser reduzida àquele
estilo amorfo e chato que é o do periódico. Só então compreendi verdadeiramente
o que era aquilo que B. A. chamara a linha. Era uma superfície.
Uma superfície onde se empalmavam cuidadosamente todos os
escritos que entravam na redacção…
*
E nada mais que o sineiro cá da freguesia, não sei com que
pretexto, está a atroar os ares e a desfazer-me a cabeça num repenicar infrene
e epilético.
12 de Setembro.
Homo.
Homo (João de Meira), “Uma linha… (Páginas das minhas
Memórias)”, in A Memória, Guimarães, 1900, n.º 1, 16 de Setembro, p. 6, e n.º
2, 23 de Setembro, pp. 3-4.
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