Em Março de 1962, assinalando os 50 anos
da Universidade do Porto e do Orfeão Académico, foi publicado um jornal com o
título Porto Académico, onde aparecia um texto de Henrique Almeida, com o
título “Bons Tempos”, que se inicia com a descrição da sua primeira entrada na
Faculdade de Ciências, para uma aula. A lição ficaria na memória, não pelo
brilhantismo do mestre, que não apareceria, mas pelas maroteiras que dois “terroristas”
exerceram sobre os caloiros incautos. Eram eles um Sobrinho Barbas e o
vimaranense Emídio Guerreiro, que então andava pelos 22 anos e era “fisicamente
magro, quase limitado ao osso, de génio arrebatado e de inteligência fortemente
imaginativa”, com propensão para a oratória e chefe da Orchestra Katastrophica, uma banda de paródia que costumava animar
os carnavais dos estudantes portuenses.
Aqui fica, com um agradecimento ao meu
amigo Miguel Bastos, a parte do texto de Henrique Almeida em que fala da sua
primeira aula de química, que não o chegou a ser.
Quando a rapaziada entrou pela primeira
vez, em Outubro de 1921, no átrio sul da Universidade do Porto,
para ouvir o mago da química Ferreira da Silva, foi com pânico que viu os
estudantes Emídio Guerreiro e o Sobrinho das Barbas, os dois “terroristas” da caloirada.
Indivíduos absolutamente diferentes e
opostos no temperamento e no físico, dir-se-iam dois biótipos padrões: um, o
primeiro, fisicamente magro, quase limitado ao osso, de génio arrebatado e de
inteligência fortemente imaginativa — tipo D. Quixote — o outro, de avantajadas carnes,
espantosamente gordo, de largo perímetro ao nível da cinta, no todo um peão
humano mas de génio muito calmo, muito frio e de reacções muito lentas, tipo
Sancho Pança.
A presença destes dois sujeitos — com uma
fama e uma tradição insuperáveis no que dizia respeito à perseguição ao caloiro
— era para nós, os neófitos universitários, uma segura e certa promessa de que
daí a nada, dentro de muito poucos segundos, haveria espectacular garraiada. E
assim foi. A coisa principiou logo ali no átrio de química pela operação
denominada a tonsura do caloiro. O Sobrinho das Barbas, aquele Himalaia de
banha, de tesoura em punho, caiu impiedoso e sádico sobre as cabeleiras que ele, o vândalo de instintos
capilaricidas, julgou de mais pretensiosas ou de mais petulantes.
E um após um dos componentes daquele
bisonho, triste e conformado rebanho foi sujeito a esta e a muitas outras
tropelias, deste e de outros doutores. O Guerreiro, que era então o chefe da Orchestra Katastrophica — a mais obsoleta
e estúpida instrumentação musical que jamais se viu—e que tinha a mania do
discurso — para o que tinha inegável jeito, diga-se de passagem — obrigava ora
este ora aquele a perorar sobre os temas os mais disparatados ou os mais
extravagantes.
“Fale — impunha o Guerreiro — sobre a
influência do queijo no aparecimento e no crescimento das Pirambóias do
Egipto”. E ai daquele que não dissesse meia dúzia de asneiras de respeito e
todas de enfiada; massacrava-o então com perguntas e cavalgava-o, o que era bem
pior.
Foi assim sob uma penosa influência duma
praxe — já então muito pouco aceitável e muito pouco recomendável para a época
— que nós fomos ouvir a primeira lição do sábio químico Ferreira da Silva.
(…)
Henrique Almeida, Porto Académico, n.º único, Março de 1962, p. 8
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