Dos que conhecemos, o mais antigo autor de
pregões a S. Nicolau não era aquilo a que, nos tempos que correm, chamaríamos um
nicolino, por não ter estudado em Guimarães, terra para onde se mudou quando já
ultrapassara largamente os 30 anos de idade. João Evangelista de Morais
Sarmento era natural do Porto, onde veio ao mundo a 26 de Dezembro de 1773. Cursou na
Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, “por necessidade, e não por
inclinação”, tendo concluído o curso em 1801. Era, acima de tudo, um poeta, com fama de repentista. Em 1808, veio viver em Guimarães,
em casa dos senhores de Vila Pouca. De saúde frágil e debilitado por uma
paralisia que o acometeu em 1823, viria a morrer, em Outubro de 1826, quando contava
52 anos. É o autor dos quatro primeiros pregões da festa dos estudantes de Guimarães
a S. Nicolau que se conhecem, os que foram recitados nos anos de 1817, 1818,
1819 e 1822.
No primeiro daqueles poemas, composto por 52 versos, são já introduzidos
alguns dos elementos que virão a ser sucessivamente glosados nos pregões nicolinos.
Desde logo, a presença recorrente de personagens da mitologia clássica (Lísia,
Minerva, Marte), dos ginjas, do sórdido
taful e do audaz Caixeiro, a quem estavam destinadas duras penas, caso se intrometessem
nos festejos (aquele que o tentasse há-de limpar-nos com a língua as bota / e
levar as costelas meias rotas). Melhor trato não teria o rendeiro de Urgezes a
quem cabia entregar aos estudantes a sua “posse”, onde se incluíam as maçãs que
depois eram distribuídas pelas damas
vimaranenses, caso não recebesse os estudantes convenientemente (o Rendeiro a não estar bem preparado /
há-de ser no Toural arcabuzado). Mas, acima de tudo, percebe-se que os estudantes pretendiam cativar as atenções das raparigas, as Belas, o condigno ornamento das janelas.
Terminada a declamação do pregão num local, o pregoeiro ordenava:
Terminada a declamação do pregão num local, o pregoeiro ordenava:
Cubram-se as testas, o clarim se emboque.
Marchemos... O tambor ao Bando toque.
Curiosamente, no pregão de 1817, não se fez
qualquer referência ao patrono da festa, S. Nicolau.
Pregão na
Festa dos Estudantes de Guimarães, chamada de S. Nicolau (1817)
Oh Lísia! oh
dos Impérios flor amena!
Que pouco te
importou, que inchado o Sena
Trasbordando,
feroz o pezo ingente
Desenrolasse
da tremenda enchente
Sobre teus
campos, teus estados, praças.
Rolando em
cada onda mil desgraças!
Que pouco te
importou que o feliz Marte
Que às maiores
nações arrima o ombro,
E as maiores
Nações cobre de assombro,
Sobre teus
muros trovejasse horrendo,
Em ódio, em
vingativa raiva ardendo!
Herói tiveste,
que os Heróis esmaga,
Augusto
morador da excelsa Plaga,
Que a frente
de imortal esplendor matiza,
E as Estrelas
aos pés sagrados piza.
Mimo de Jeová,
mimo daquele,
Que os Orbes
todos assoprando impele;
Rei dos anos;
Senhor da Eternidade,
Maior, inda
maior, que imensidade?
Foi ele,
ninguém mais, foi, eu o juro
Quem contra
a Gália ergueu bronzeado muro
Ele qual Bóreas,
que o negrume espalha,
Faz em
pedaços a infernal canalha,
A águia
feroz de sangue tinge a pluma,
E açoitada na terra em raiva espuma.
Guimarães! Que se segue? o grato fogo
Em gratos Corações não rompe logo?
Haverá entre nós algum ingrato,
Que em culpada inacção fique insensato?
Não, assim não será; os seus louvores.
Eu já passo
a ordenar. Rufem os tambores.
A sua Guarda
de Honra nós compomos,
Ministros do
seu culto só nós somos;
Silêncio
respeitoso... Ordem do dia...
“Será sem
Lei Escolástica folia.
As ruas
correndo a Juventude solta
Quanto lhe
agrade levará de envolta.
O condigno
ornamento das janelas
Damasco não
será, serão as Belas.
Aos Ginjas que tolherem que elas falem
Mil pranchadas nas costas logo estalem.
O sórdido taful, o audaz Caixeiro
Que à Função se meter de prazenteiro
Há-de limpar-nos com a língua as botas,
E levar as
costelas meias rotas.
O Rendeiro a
não estar bem preparado
Há-de ser no
Toural arcabuzado.
O oficial maior fica incumbido
Do que mandamos a mostrar cumprido.
Cubram-se as testas, o clarim se emboque.
Marchemos... O tambor ao Bando toque.”
Poesias de João Evangelista de
Morais Sarmento, Coligidas por vários Amigos seus, revistas pelo A. Poucos
tempos antes de sua morte , e dadas à luz por alguns de seus admiradores, Porto,
1847, pp. 146-148
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