Uma polémica entre Camilo e Sarmento

"Ai os nossos retratos! Credo! Você parece um ferocíssimo salteador da Calábria; eu dou ares de um inválido brigadeiro das antigas milícias a expirar de sífilis cancerosa no hospital de Runa."
(Carta de Camilo a Sarmento)


Aconteceu em Braga, no dia 28 de Novembro de 1885: procuradores da cidade de Guimarães à Junta Geral do Distrito, o Conde de Margaride, o Dr. Joaquim José de Meira e José Martins de Queirós Minotes, foram insultados e apedrejados. Assim se iniciou o célebre conflito, que inflamou a cidade de Guimarães contra Braga e que estaria na origem da queda do último Governo de Fontes Pereira de Melo. Na refrega que se seguiu, destacou-se a voz de Martins Sarmento, que interrompeu os seus estudos arqueológicos e assumiu a primeira linha do movimento de indignação que mobilizou as gentes de Guimarães, que exigiam a separação do distrito de Braga e a união ao Porto.
A turbulência estender-se-ia por boa parte do ano de 1886. No final de Março do no seguinte, o diário de Lisboa As Novidades, dirigido por Emídio Navarro, publicou uma polémica que iniciada por um tal egresso Bernardo de Brito Júnior, que publicou um texto com Notas de Velha História Pátria, dirigido a Martins Sarmento. A resposta não viria assinada pelo arqueólogo vimaranense, mas por F. Fagundes.
Em números seguintes daquele jornal, prosseguiu uma polémica satírica, na qual a historiografia que explorava patriotismos extremados e bairrismos pacóvios, povoada de heróis e de milagres, era submetida à verrina de Camilo (Bernardo de Brito Júnior) e Martins Sarmento (F. Fagundes).
No primeiro texto, saído ainda no rescaldo das agitações entre Braga e Guimarães, Camilo referindo-se a um jornal de Braga em que se encomiavam as proezas dos seus arcebispos aquando da invasão o do seu território pelas tropas de dois capitães da Galiza, vem a terreiro acrescentar à notícia do jornal Braguês pormenores relativos a esse passo de armas. Dirigiam-se os dois fidalgos por força respeitável, retrocederam sobre Braga resolvidos a roubar de passagem o que tinham deixado. Foi assim que, tendo chegado a Braga, foram-se ao Banco do Minho, onde ensacaram alguns alqueires de libras, maços de notas, títulos, letras, promissórias, baixela de oiro e prata, e escrínios de jóias empenhadas, das principais famílias. Depois, D Fernando, que era já velhote e glutão, lembrou ao mano que comessem alguma coisa em Braga porque daí até à Galiza não achariam estalagem decente. [...] Resolveram, pois, ir aos Dois amigos comer frigideiras, enquanto a sua gente de armas, a preço de cutiladas, arranjavam que almoçar nas casas dos bracarenses transidos de medo.
Iam os fidalgos na duodécima frigideira quando chegou até eles o alarido das hostes do arcebispo, que ao toque das charamelas e da banda musical das Taipas, vinham chegando dos lados da Falperra. Tiveram que largar o repasto e fugir. No largo da Senhora-a-Branca, esperava-os, com um revólver, marca Bull-dog de seis tiros, um estudante de teologia moral, filho de um chapeleiro, Fatacha de seu nome. Quando os dois Castros congestionados de Frigideiras e pavor, apareceram, o teólogo desfecha, e ao quinto tiro vasa um olho do cavalo que se empina escabriado pela dor, e cai morto, entalando a perna direita de D. João de Castro. E o acto de heroísmo dos Fatachas terminaria com o Fatacha Senior a atirar ao cavaleiro caído uma bomba de dinamite.
O modo como, naquele tempo, eram encarados os trabalhos de arqueologia em Portugal seria escarnecido na réplica ao texto do egresso, que levou por título: Subsídios para a história das Sociedades Arqueológicas em Portugal. Aí, F. Fagundes, aliás, Martins Sarmento, escrevia com profundo conhecimento de causa, já que tratava das suas próprias atribulações de escavador de montes, em que os arqueólogos eram confundidos com os que andavam à cata de tesouros munidos do Livro de S. Cipriano.
Naquela altura, haveria em Guimarães, segundo Fagundes uma irmandade de devotos de S. Cipriano, formada por gente capaz de não deixar cacos velhos nesta terra de Reburros, que andavam em busca de preciosidades ocultadas pelos mouros ou pelo diabo: pedras com letras safadas, asas de uma panela de barro podre, pregos meios comidos, uns verdes, outros cor de ferrugem, a décima parte dum nariz de metal, etc, etc. Sim; mas os estrangeiros sabiam que aquilo era oiro encantado; trocavam-no por oiro desencantado e levavam tudo. Era uma varredoira.
Um dia, decidiram ir garimpar tesouros encantados para terras de Bragança. Estavam eles a tentar trazer à superfície um enorme calhau, que não queria sair do seu covão, e onde se viam uns riscos que pareciam letras, o alcaide pequeno de Bragança chegou-se a eles e disse-lhes que se pusessem fora dali. A alternativa era uma ameaça que não deixava margens para dúvidas: seriam corridos à mocada.
E lá retiraram para o seu torrão natal. Em chegando a Guimarães, decidiram, em assembleia geral, transformar a irmandade de S. Cipriano, advogado dos arqueólogos, numa irmandade de S. Crispim, advogado dos sapateiros. E logo se viu que, com a irmandade reconvertida, todos os irmãos engordavam e enriqueciam, ao contrário do que sucedia nos tempos em que vendiam as antiguidades aos estrangeiros... Este caso tem muita moralidade - concluía F. Fagundes.
Para ler na íntegra esta polémica entre Camilo e Martins Sarmento, basta descarregar o documento seguinte:


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