S. Nicolau |
Se há anos
de que não conhecemos nenhum pregão, para certos anos, conhecemos mais do que
um. Assim acontece no ano de 1844, que produziu dois pregões. Num dos pregões
do manuscrito existente na Sociedade Martins Sarmento, transcrito pelo Abade de
Tagilde a partir de apontamentos de António José de Abreu Gouveia, cartorário
de S. Domingos (como todos os que, até aqui, se escreveram a partir de 1828),
encontra-se a seguinte nota: este bando
não foi recitado por motivos que ignoro, talvez pela referência ao Cabido e por
ser bastante livre. O seu autor foi o distinto erudito José Joaquim da
Silva Pereira Caldas e o texto vai um pouco mais longe na ousadia com que se
dirige às belas (Vossos peitos abri,
sexo mimoso, / Fruí hoje de amor ardente gozo).
A referência
ao Cabido da Colegiada a que se refere a nota acima transcrita é um remoque,
com uma ameaça de vingança expressa, à vitória dos cónego em julgado na questão
da renda Urgezes, que esteve na origem processo judicial aberto na sequência da
extinção dos dízimos (E tu, boçal Cabido,
que roubaste / O que era nosso e em teus papéis achaste, / Não zombes, não, do
mísero estudante, / Que com dolo venceste, rapinante; Um dia lá virá em que
julgado / Talvez melhor serás e castigado).
Bando escolástico -1844
Vem, grande
Nicolau, vem neste dia,
Encher a
Guimarães de alma alegria.
Téqui a
juventude desditosa,
Sentada à
banca velha e carunchosa,
Só tivera
orações, tanta figura,
Que lhe dá
desprazer, causa amargura.
Dilemas,
induções e silogismos,
Têm sido
para nós montões de abismos.
Longos dias
passamos lá na escola,
Mas nada do
que lemos nos consola;
Vem, grande
Nicolau, vem neste dia,
Encher a
Guimarães de alma alegria.
Aos nossos
corações encher de alento,
Vales mais
para nós, que alto sustento;
Acabou-se o
penar de um estudante,
Esqueça-se o
passado neste instante.
Férias dá
Nicolau à mocidade;
Brinquedos
folgazões da nossa idade,
Em honra e
em louvor, gratidão sua,
Do quinto de
Dezembro veja a Lua;
E veja o Sol
também do sexto dia
Com perfeito
prazer, viva alegria.
Em todo o
Guimarães vejam-se as belas
Sem susto,
sem receio, nas janelas.
Juiz hoje
não há insulso e peco,
Que se
atreva a tolher nosso embeleco;
Nem tão
pouco haverá caturras pais,
Que as
filhas aferrolhe em dias tais.
Vem sexo
encantador, sexo do gosto,
Mostrar aos
estudantes o teu rosto,
Estudantes,
a flor da sociedade,
Mancebos,
com primor, com gravidade,
Bucéfalos
rasteiros saltem, rinchem,
Airosos
pelas ruas corram, pinchem:
Corra-se em
Guimarães por qualquer rua,
Do grande
Nicolau em honra sua.
Farsas,
exibições, em toda a parte,
Comecem
desde já com graça e arte.
A toque de
tambor, rufo de caixa,
Tudo hoje um
estudante alaga e racha.
Vem, grande
Nicolau, vem neste dia,
Encher a
Guimarães d’ alma alegria.
Que glória
para vós, ò sexo amável,
Neste dia
sem par, tão respeitável,
Em ver a
vossos pés cada estudante
Mil finezas
rendendo a cada instante?
Já que o
tempo veloz tão breve foge,
Apressai-vos
ò belas: tempo é hoje;
Enchei por
uma vez vossos desejos,
Tomai dos
estudantes magos beijos.
Tomai-lhes
com presteza os níveos braços,
Que abertos
vos oferecem mil abraços;
Tomai-lhes
do alvo peito o rubro pomo,
Em nada
receeis feições de Momo.
Antigos
trajes, máscaras horrendas,
Não vos
encobrem, não, feições tremendas.
Só graças
juvenis, altivos brios,
Ocultam
semelhantes atavios.
Vossos
peitos abri, sexo mimoso,
Fruí hoje de
amor ardente gozo.
Ouvidos não
presteis ao caixeirinho,
Que quer do
deus de amor seguir caminho;
Nada tem que
vos dar, faltam-lhe as graças,
Só vos pode
causar tristes desgraças.
Atendei,
escutai qualquer estudante,
Só esse é
capaz de ser amante.
Vem, grande
Nicolau, vem neste dia,
Encher a
Guimarães de alma alegria.
Em honra
vossa, Nicolau sagrado,
Tudo nos dá
prazer e causa agrado.
Ansioso nos
pula o coração
Apenas nos
lembrar vossa função.
Função que é
tão antiga e tão brilhante,
E em que só
pode entrar cada estudante.
Se alguém se
entremeter neste brinquedo,
Bem mal se
sairá do seu folguedo;
Açoutes,
pontapés e chicotadas,
De sobejo
terá entre apupadas;
O tanque do
Toural, bem cheio de água,
Seus brincos
tornará em triste mágoa.
E tu, boçal
Cabido, que roubaste
O que era
nosso e em teus papéis achaste,
Não zombes,
não, do mísero estudante,
Que com dolo
venceste, rapinante;
Um dia lá
virá em que julgado
Talvez
melhor serás e castigado.
Vós,
escolástica grei, tomai sentido,
Que seja à risca
o bando bem cumprido,
Porque ao
som do tambor, que vai rufando,
Ao ar em
alto som o vou lançando.
FIM
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