João de Meira, por Eduardo de Almeida

João de Meira

Aquando da morte de João de Meira, Eduardo de Almeida, seu colega e amigo, apesar das diferenças políticas que os separavam, desde no tempo em que ambos frequentaram o antigo Colégio de S. Dâmaso, publicou no jornal republicano Alvorada uma sentida evocação  do, como escreveu, melhor pedaço da minha vida, a parte da mocidade que só o Ideal ilumina e que não obedece senão ao coração, que, domingo, levaram a enterrar na terra aldeã de Gominhães.


João de Meira
Quando entrei para o colégio de S. Dâmaso, o P.e Firmino apresentou-o à minha consideração como um conterrâneo ilustre, julgando bem ingenuamente que era possível tomar alguém para modelo — na inteligência — o único vício humano que se não imita.
O João era então um riso aberto de franqueza e amizade. Naquele eterno receio que a todas as crianças amedronta, lançadas da família na população dum bulhentismo vário de encarcerados, ao sentirem-se isoladas — de afectuosa simpatia — entre tanta gente, eu vi o primeiro abrigo na asa carinhosa da sua devotada lealdade, que ele conservou inteiramente perfeita sempre, nem a mais pequena sombra de esmorecimento a manchando em qualquer instante.
A nossa convivência não foi larga, éramos de classes diferentes, o João desenvolto e rapaz, eu arrastando já esse mórbido sentimentalismo de fraco que havia de transviar-me nesta desconsoladora alegria de viver.
Certo dia em que se festejava alguma coisa que mexia com o nervo patriótico, a grande gala duma sessão solene viera animar a imensa sala de estudo — onde as horas tantas vezes paravam numa arrelia interminável pelas noites invernosas — , com a orquestra do bom Martinó e a fonografice estralejante de versos e prosa, a que todos dávamos tantas palmas que até o P.e Amândio, austera catadura de disciplinador, sorria bonacheironamente. Mas eis que, lá ao fundo, no estrado circundado de vasos de palmeiras, destacando-se da bandeira do colégio com seu morcego de oiro, o João timbradamente desfia, num discurso original, as glórias de Guimarães!
Pela primeira vez eu ouvi falar assim da nobreza de heroísmo e trabalho da terra em que nascêramos e duplamente consolado por me contar a boa nova de tantos privilégios e forais, estreando-se na luta da inteligência, aquele irmão mais velho.
Pouco depois, numa tarde, ele aparecia no Comércio de Guimarães com uns bem vestidos sonetos de sentimento e ironia.
A sua cultura era já invulgar e superiormente inclinada para a Arte. Numa febre da alma, o charuto aceso— esse magnífico charuto de revolta que à noite de espiritual boémia nos acompanha pelo infinito como espiralando a fumarada de vertiginosa locomotiva —, ele profundava Camilo e Eça, Antero e Junqueiro, Flaubert e Zola, não com o incansável mas estéril ardor do transeunte esfomeado de Beleza, mas na ânsia perturbante, mais voluptuosamente envenenadora, de quem não perde, mineiro que uma lanterna de Ideal encaminha no fundo da terra, uma só partícula por que ela possa ter a forma lapidar dum diamante.
Ah! como a mocidade sabia rir e sonhar... Riso que ele exteriorizou na Parvónia, metendo-se como todos os loucos de dezoito anos e todos os sábios da setenta a endireitar o mundo, chapando na bochecha apoplética do Monstro um forte sinapismo de troça fantasista e de bom senso…
Deixando-se embalar na música subtil da Piedade pelos braços do Amor, eterno engano que ele domou vitorioso, do Verso harmónico e enlevante…
A vida saudou-o respeitosa quando o viu surgir armado de grossos sapatos brancos ferrados, o cabelo cortado rente, casquinante, sem temor, um volume das Farpas debaixo do braço.
Com uma rara lucidez de crítica e ajudado por uma aberta memória incansável, o seu talento chegava para o cumprimento das tarefas nas Academias e para o regalo estruturalmente necessário da inclinação literária do seu espírito.
Começou, entre outros trabalhos que foi publicando a espaços, um romance — de que porventura encontrarão fragmentos entre os seus papéis — em que devia analisar, aproximando o naturalismo de Balzac da preocupação estética de Flaubert e da fina ligeireza cheia de graça de Daudet, a psicologia curiosa e doente dum preguiçoso.
Com extraordinárias faculdades de inteligência, de estudo e de trabalho, ele apresentava uma colecção variadíssima de artigos no Independente, interpretava a obra invulgarizada de Martins Sarmento, elaborava um dicionário das expressões camilianas, rabiscava observações em quantos papéis trazia pelos bolsos, procurava cacos antigos e os velhos pregões das festas nicolinas, acompanhava solícito todo o movimento literário contemporâneo, colhia o Eça em flagrantes plagiatos, rimava como Antero com a sonoridade de Junqueiro, sempre aliás disposto a arrumar para cima de quantos mestres com a fastidiosa nomenclatura do esqueleto, dos tecidos...
Muito cedo, apesar desta educação intelectual a que só um espírito fortemente organizado resiste sem descambar na lamúria ou sem entrar numa constante revolta que, podendo ser muito justa nas suas aspirações, apenas consegue inadaptar-nos, o João se distinguiu pela sua ponderação cheia de bonomia.
Desta qualidade e do seu temperamento afectivo, ele que tinha bons e leais amigos porque era um bom e um justo, vivendo numa atmosfera do mais extremoso amor de família,havia de resultar a sua orientação política.
Tivera a embalá-lo o canto de guerra dos Entusiastas, essa epopeia brilhante em que seu Pai, homem de inconfundível dignidade pessoal e política, tanto se distinguira, e que veio felizmente acordar os nervos pacatizados da cidade tristonha.
O Dr. Meira, nome em que a minha geração aprendeu um conjunto de virtudes cívicas, educou o João com a ternura do Artista que se vai imortalizando na obra em que se agita o próprio sangue e se incrusta o melhor do espírito. Meu Pai querido, meu grande mestre — dizia comovidamente o filho. Com razão.
Marcou época o modo intelectual do jornalista — Homo —, versando com uma clareza de ideias que na literatura francesa lhe podia ensinar as questões de todos os dias, e a audácia cheia de brilho picaresco e heterogéneo saber em polémicas verdadeiramente modelares esfarrapando o adversário num grande riso generoso.
A lógica política — enganadora como os silogismos aristotélicos — anda à parte da lógica racional e das inspirações do sentimento — terá havido algum político que não fosse por vezes como forçadamente injusto, vendo só as coisas relativas ao centro em que se fixou numa metodização de intolerância permanente, apenas mais ou menos disfarçada?
O João era bem inteligente para escapar a esse inclínio precipitoso, mas as circunstâncias são na política como as ondas revoltas na procela... Com a diferença a mais duma virtude completamente esquecida.
Ano passado, quase pela última vez, encontramo-nos sós em Vila do Conde. O João, ao ver-me, chamou — e era bem a mesma voz, limpa de qualquer agravo, a mesma voz de amizade que eu ouvia outrora, pronunciando no mesmo tom o meu nome. Já repararam como o nosso nome varia na entoação dum amigo da infância através da idade?... E das flutuações do interesse e no uso da chamada liberdade de pensamento e de consciência?
O seu curso na Escola Médica fecha como se abriu, na sessão do colégio, a sua vida pública — é sobre Guimarães que ele disserta num trabalho do mais alto valor pelas investigações históricas que encerra. Essas páginas, que, corrido pouco tempo, ele viu copiadas, sem designação da fonte em que as colhera, na obra dum filósofo por quem tivera uma fobia camilanesca, levaram-no a professor da Faculdade de Medicina, mas revelaram sobretudo em João Meira um excelente obreiro da ciência histórica, tão pouco entre nós cultivada e sujeita ao capricho verboso dos ignorantes ilustres.
A Sociedade Martins Sarmento não encerrou as suas portas em mera e insignificativa demonstração de pesar.
É que não tem, entre os novos, quem por enquanto o substitua realizando o salutar programa que o seu nome inspira.
A morte levou-lhe, ontem, o Abade de Tagilde, um dos mais carinhosos educadores de João nesse ramo.
Fica ainda Leite de Castro. Mas depois?... E tanto que fazer! Quem irá procurar as cinco citânias que o Sarmento dizia ver da sua janela do quarto de trabalho? E quem se preparará para terminar a importante publicação dos documentos históricos do Município?
Eu creio na sinceridade da sua amargura e, porque nela creio, lembro-lhe a piedosa tarefa de coligir e publicar a obra inédita deste sócio querido que tantos serviços desinteressadamente lhe prestou, e na qual poderá contar, se o quiser, com o esforço comovido dum sincero amigo de João.
“Je porte, pèlerin, mon deuil et mon ennui.”
Foi o melhor pedaço da minha vida, a parte da mocidade que só o Ideal ilumina e que não obedece senão ao coração, que, domingo, levaram a enterrar na terra aldeã de Gominhães. Desventurado João! Pobre Pai...
Na maior dor humana, o próprio consolo divino há-de ser ridiculamente atroz!
“Pour le pére accablée de cette double ruine...»
Eduardo de Almeida.
Alvorada, 3 de Outubro de 1913



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