Francisco Martins Sarmento, no leito mortuário. Esta foi a primeira vez em que se viram no seu peito as condecorações que recebeu ao longo da vida. |
Há exactamente 153 anos, neste dia de Março, Francisco Martins Sarmento
completava 27 anos. Alguns dias depois, publicaria no jornal Vimaranense,
assinando com um dos pseudónimos que então usava (Fausto), um texto com o título “Os meus anos” em que
contava um sonho que teria tido na noite de 8 para 9 de Março, em que se via
morto. Felizmente para ele e para a arqueologia, ainda passariam 39 anos até ao dia em que a morte levou Sarmento.
Os meus anos
Na noite de 8 para 9 tive um belo sonho: morri.
O leitor rabugento que torcer aqui o nariz, fará crer, que me não
deixa morrer à vontade, nem fazer-lhe confidências importantes — o que é
sobremodo impertinente para quem escreve. Ora pois; deixem-me contar.
Morri. A alma, “esse corpo subtil”, como diz Homero e como, salva
a redacção, dizem os mesmos espiritualistas modernos, deixou-me o cadáver
estirado na cama e o seu primeiro pesar foi de não ter recomendado que o
queimassem e lhe soprassem as cinzas ao vento.
Fique consignada aqui esta disposição testamentária. Não quero ser
enterrado. Tenho nojo dos guzanos e das minhocas e não quero dar ceva a estes
animalejos, como, em vida, a tenho dado a outros animalejos, mais repugnantes
ainda, que me têm caluniado a biografia.
Deixemos isto. Aquele pesar foi-me compensado pela licença de
poder despedir-me de Alda o dizer-lhe o que lhe não tinha podido dizer ainda.
Alda!
Quando lhe entrei no quarto, seria meia-noite talvez. A luz,
quebrada por um abat-jour cor-de-rosa, dava suficiente claridade para
poder contemplá-la. Era bela, bela, mais que nunca, com a tristeza suave que
então lhe adoçava mais as feições. Triste! Um morto pode ser imodesto, pois que
não causa inveja a ninguém; na minha qualidade de morto, entreguei-me
livremente à ideia de que a minha morte era a causa daquela melancolia. E
chamei: — Alda!
A jovem estremeceu.
— Não tenhas susto — continuei eu. Não venho fazer-te mal. Morri
com o desejo de falar-te e dizer-te adeus e foi-me concedido satisfazer este
desejo. Se pensares alguma vez em mim, pensa como num homem que te amou muito,
ah! muito... — E porque mo não disseste em vida? — Foi porque a besta, ou
corpo, em que eu vivia, era uma besta como todas as bestas. Se me dissesses:
amo-te; com a certeza do teu amor; para te amar, como sei amar, seria
necessário estreitar-te num abraço eterno de felicidade e entusiasmo e
arrebatar-te assim pelo espaço infinito até às portas do céu que eu sonhava e
que se abriria aos meus rogos. E ai! com o trambolho daquele corpo de músculos
e ossos no podia fazer nada disto. E agora adeus. Vou viver uma triste vida,
porque me vais esquecer dentro cm pouco o eu voltearei em torno de ti, sem te
poder falar, sem poder pronunciar sequer o teu nome. Ai! Mas irei aninhar-me no
cálice da flor que tu colheres; cantar a nota mais meiga da harmonia que te
consolar as tristezas; correr no raio da estrela em que fitares os olhos;
ciciar na brisa que brincar com os teus cabelos ; viver em tudo, ter parte em
tudo que possa ser-te grato ao coração e à alma. Adeus, adeus, adeus.
E fugi, gemendo.
E acordei do meu sonho. Eram dez horas da manhã do dia 9 de Março.
Fazia anos. Ao entrar na realidade do mundo positivo, senti uma repugnância
cruel. Tentei matar a vida exterior e recolher-me à vida íntima e misteriosa do
meu sonho, para saber o que aconteceu depois. Debalde!
Fiquei todo o dia rabugento, e hoje ainda, não peço outra coisa
senão esta vida de sonhos.
Nada mais tenho, além disto e do palpite de não tornar a fazer
anos mais alegres.
Sim, tenho mais todo o tempo livre para poder escrever sob o
título de Sonho e Realidade algumas frioleiras de que esta frioleira é o
prólogo.
Fausto.
Vimaranense, Guimarães,
22 de Março de 1860
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