Pregões a S. Nicolau (3): 1819



Dos quatro pregões que escreveu o médico-poeta João Evangelista de Morais Sarmento, o mais extenso foi o de 1819, com 103 versos. Começa com referências à longa espera desde a festa a S. Nicolau do ano anterior

Mais um ano passou (eis finda o Sol tamanha volta… / correu os Signos doze à rédea solta), e regressa a Guimarães o Dia de Nicolau, Dia de Amores! É a alegria turbulenta dos estudantes que que volta a encher a cidade por uns dias: do arruído estremeça a praça, a rua, / folgança, e mais folgança nua e crua.

As belas dulcineias recebem o nome de damas, que perdurará pelos tempos adiante. Este pregão introduz elementos de crítica social mais explícitos. Lá aparece uma mulher pública (ou de todos comum como a Oliveira) e as recorrentes alfinetadas aos casquilhos que ousavam intrometer-se nas festas. Para estes há largo Chafariz para o mergulho, / Há sobejos torrões para o entulho. / Escolástico murro o queixo escacha, / Um pontapé ao meio as costas racha. / De altas vinganças o momento é este. Pela primeira vez, aqui aparece referência aos banhos forçados no chafariz do Toural, uma velha tradição Nicolina.

Não faltou também a alfinetada ao rendeiro: quer que ao Rendeiro trema a passarinha / Mal que à Renda num Coche tremebunda / Chegar Sua Excelência rubicunda. Numa nota introduzida aquando da publicação póstuma das poesias de João Evangelista, esclarece-se quem era sua excelência rubicunda: um Coreiro da Colegiada vestido de Cardeal, em cuja presença se reparte a Renda aos Estudantes. Já assim era no século XVII.


Outro Pregão para 1819.


Que viva!.. eis finda o Sol tamanha volta…

Correu os Signos doze à rédea solta,

Mas essa para os Mais veloz carreira

Para Nós foi tristonha vida inteira.

Que viva!... que a Função dos Estudantes

Ei-la torna galharda como dantes!

Ai de Ti, Guimarães, ai que seria

Se não fora a Grandeza deste Dia!

Não é já outro de mais guapa fronte

Este que em torno vemos horizonte!

Matiz de nova cor não traja a Terra!

Ecos de glória não rebomba a Serra!

Por mãos calosas até aqui ferido

Não vai hoje o tambor todo garrido

Ao ver-se em mãos de neve, mãos mimosas

Dignas só de esfolhar jasmins, e rosas!

Não se afadigam já pelas janelas

Em trémulo reflexo como estrelas

Os olhos de formosas Dulcineias

Setas de ouro apontando às nossas veias!

Por ser na Vila, e ser nos arredores

Dia de Nicolau, Dia de Amores!

Que esperais, claros Filhos de Minerva!

Erga-se o remoinho, a guerra ferva.

Do arruído estremeça a praça, a rua,

Folgança, e mais folgança nua, e crua.

Hoje hão-de remoer de raiva os Bonzos,

Quais perros gemem co’a ferrugem os gonzos...

Vede como já foge para os matos

Estúpida caterva de insensatos.

Do Escolástico açoute sacudidos

Urram aqui, ali de horror transidos...

E que pensavas tu, boçal basbaque,

Que na cachola vã forjando ataque

Àquela, a esta Dama presumias

Iguais a Nós fazer cavalarias?

O quê? sem pagar foro à Palmatória

De Vénus aspirar ao Cinto, à Glória!

Tu és, Crastino Dia, o Varredoiro

De tanta vil relé, tanto besoiro.

Ressurge Aurora Sexta de Dezembro:

Dos sãos arranca o gangrenado membro.

Das mãos não largues válida joeira.

Que há muito joio, que enxotar na eira.

Quem sofrerá um parvo encodeado

Porque ao Domingo sai embonecrado

Todo em bicos de pés, todo farfante

De Braga seja vindo, ou de Amarante,[1]

Porque lhe deu na tonta andar à moda

Querer com Estudantes fazer roda?

Querer armar das Damas à conquista

Sonhando que não há quem lhe resista?

E como se espenica!... se espaneja!...

Ao Norte como, como ao Sul bordeja!...

À manhã o verás pateta bronco

Quando a manopla te alimpar o monco.

Não te lembrava este tumendo Dia?

Nem palavra, nem uma cortesia,

Se consente amanhã: ou seja pobre

A Dama, ou seja rica, humilde, ou nobre,

De qualquer geração que a Árvore seja,

Ou só própria de Heróis como a Palmeira,

Ou de todos comum como a Oliveira,[2]

Tudo é só nosso, tudo é reservado

Ao Filho de Minerva encaretado

Lei primorosa! Lei sublime, augusta,

Que tantas lidas, e suor nos custa!

Prémio dos prémios mais que o Néctar doce

És oh Sacro Direito, e antiga Posse:

E então há-de perder-se?... O sol primeiro

Nos bigodes dum Turco prisioneiro

Estrebuchar veremos qual na teia

De Aranha a mosca até morrer perneia.

Temos fino cuteâu tão cortadoiro,

Que apenas apontado estira um toiro.

Temos lança Aquileia, Hercúlea clava

Catapulta feroz, Balista brava.

Há largo Chafariz para o mergulho,

Há sobejos torrões para o entulho.

Escolástico murro o queixo escacha,

Um pontapé ao meio as costas racha.

De altas vinganças o momento é este.

Tremei, Casquilhos... se esta Tropa investe...

Austro, nem Aquilão não cale mais forte

Das nuvens entre a horrisona coorte.

Nicolau sim quer paz, mas quer respeito:

Quer sempre ele só ver nosso direito.

Quer a ponto ver pagas as medidas

Com aquelas honras, que nos são devidas.

Qual pisco ao ver a rubra ventoinha

Quer que ao Rendeiro trema a passarinha

Mal que à Renda num Coche tremebunda

Chegar Sua Excelência rubicunda,[3]

Seja assim, Guimarães, Vila formosa.

Façamos todos a Função gostosa.

Ouça alegre a Manhã, a Tarde, a Noite

Sempre folgaz, não justiceiro açoite.

Por honra tua, e bem do teu toutiço

Assiste com mudez, e olhar submisso.

Tal é deste Pregão toda a matéria.

Sentido oh lá!... depois não haja léria.

Só falar pode a Moça esbelta, e linda,

Que por muito que fale, é pouco ainda.




[1] Moço sapateiro, tal qual o pinta o Autor.
[2] Alude à Oliveira, mulher pública de Guimarães
[3] É um Coreiro da Colegiada vestido de Cardeal, em cuja presença se reparte a Renda aos Estudantes.

Poesias de João Evangelista de Morais Sarmento, Coligidas por vários Amigos seus, revistas pelo A. Poucos tempos antes de sua morte, e dadas à luz por alguns de seus admiradores, Porto, 1847, pp. 152-156


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