Meter nariz



Já aqui demos notícia, há dias, de uma história que metia um nariz. Agora, aqui vai outra, em que se conta como se devolveu o nariz a um homem de negócios de Guimarães que, havia anos, vivia sem ele. Transcrevemo-la da Revista Universal Lisbonense de 22 de Dezembro de 1842.

Nariz Fénix.
Para em tudo ter a moda jurisdição, até já com os narizes contendeu. Nariz pouco e chato há-se entre os pretos por formosura: entre os tártaros quanto menos narigado mais gentil-homem; e a mulher de Gengis-Kan, que no lugar do nariz, só tinha dois buracos, era reputada epílogo de toda a lindeza. Entretanto, para quem não é, tártaro, nem preto, a falta de nariz, ou qualquer notável defeito nele, já se reputa por muito grande desar. No Levítico se proíbe entrar para o sacerdócio, quem tiver o nariz, ou muito grande, ou muito pequeno, ou torto: no Egipto não achavam maior castigo para as adúlteras, do que deceparem-Ihes os narizes; e em várias crónicas se lê de moças honestas, que por não caírem formosas nas mãos dos inimigos, cortaram os narizes pelas suas próprias mãos; - grande lástima era, que em prémio de tamanha heroicidade, não pudesse este nobre parte vir depois a rebentar e renascer melhorada; e que a natureza lhe recusasse assim um privilégio, que havia concedido às pernas dos lagartos e às cabeças dos caracóis.
Cometeu a arte emendar aqui a natureza, e conseguiu. Em autores antigos, como Talhacócio e Ambrósio Paré se acha já notícia desta escultura cirúrgica, ou se antes o quereis, desta cirurgia plástica. Fazia o operador no braço do desnarigado uma incisão, onde coubesse o fragmento, que ainda havia de nariz; enraizava-o ali; atava-o com as carnes vivas do braço, e deixava-o ficar por espaço de quarenta dias, até que o nariz tivesse carne no meio da chaga, e se visse com a carne do braço, e depois de unida e incorporada, cortava a do braço, e no mesmo tempo que ia afeiçoando o nariz, curava as chagas. - Mais modernamente, e há poucos anos, se começou em França, onde a cirurgia operatória para alindar é subida a grande ponto, outro método mais eficaz e menos cruel: - consiste em cortar na pele da testa um retalho, da figura de um ás de espadas de três polegadas de alto e uma e meia de largo, com o vértice para baixo metido entre as sobrancelhas, parte única por onde esta pele fica pegando com a restante: arranca-se de cima para baixo este plano de pele; dá-se-lhe uma volta na parte inferior, onde os cortes não chegaram a tocar-se, e revirado assim para dentro o carnal e a cútis para fora, se ajeita em feição de nariz; e por via de ferida aberta na parte respectiva do rosto se faz que solde e se incorpore, onde deve ficar.
No Periódico dos Pobres do Porto achámos que o Sr. António Bernardino de Almeida, Lente da nona cadeira da Escola Médico-Cirúrgica daquela cidade, assim fizera, e com próspero resultado, um nariz ao Sr. Manuel Moreira Lopes, negociante de Guimarães, que, há já anos, vivia sem ele. Por esta ocasião devemos recordar que outro tanto havia já feito, há muito tempo, e mais de uma vez o tem repetido, segundo ouvimos, o nosso insigníssimo prático e operador o Sr. José Lourenço da Luz, lente na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Outros haverá que também o tenham conseguido, mas de que não temos notícia para deles fazermos neste lugar a devida menção.
Felizmente poucas são as pessoas para quem, por lhes faltar nariz, esta notícia seja interessante; mas há tanto pintalegrete, cujo único mérito é a cara, que nos parece devem folgar com esta nova indústria, que lhes proporciona substituir ao seu nariz de nascença outro mais bem arranjado, e até, porque não?, variar também nisso as modas todos os meses.
Revista Universal Lisbonense, volume 2, 1842-1843, 22 de Dezembro de 1842, p. 185

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