João de Meira (31 de Julho de 1881 - 25 de Setembro de 2013) |
No dia 25 de
Setembro 2013 passam 100 sobre a morte de uma das inteligências mais fascinantes
que Guimarães já produziu. João Monteiro de Meira faleceu jovem, demasiado
jovem para cumprir tudo aquilo que se lhe prenunciava. Sem ser historiador de
formação foi ele que, em primeiro lugar, pôs em questão alguns dos mais antigos
e enraizados mitos da nossa história local. Escritor de primeira água, divertia-se
a escrever pastiches ao estilo de
grandes escritores, como Antero de Quental ou Cesário Verde, que passavam,
mesmo entre alguns dos mais eruditos especialistas, como obras daqueles poetas.
Médico e professor na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, deixou uma obra científica
que lhe granjeou reconhecimento entre os seus pares.
Este é um
ano para Guimarães recordar João de Meira e a sua obra.
Sobre João
de Meira, aqui fica parte do posfácio à edição da Sociedade Martins Sarmento da
sua obra “Sherlock Holmes no Porto”.
POSFÁCIO
João de
Meira (1881-1913) nasceu em Guimarães a 31 de Julho de 1881. Era filho de
Joaquim José de Meira e de D. Adelaide Monteiro de Meira. O seu pai era um
prestigiado médico e cirurgião, que se destacou pela sua intervenção cívica na
política e na cultura locais. Seguiria as pisadas do progenitor, concluindo o
curso de medicina no Porto, em 1907, com uma tese intitulada O concelho de Guimarães (Estudo de demografia e
nosografia). Em 1908, concorreu a professor substituto na Escola Médico-Cirúrgica
do Porto, onde se formara, com um
trabalho sobre O Parto Cesáreo. Dedicar-se-ia à docência naquela escola até
à sua morte prematura, em 25 de Setembro de 1913. Ocupou a cátedra do seu mestre Maximiano de Lemos.
João de Meira cresceu numa cidade
que fervilhava de uma intensa actividade intelectual, circunstância que marcou
profundamente o seu espírito curioso e inquieto. Pela mão de seu pai, conviveu
com figuras cujo prestígio ultrapassava largamente as fronteiras de Guimarães,
como Francisco Martins Sarmento, Alberto Sampaio ou o Abade de Tagilde. Desde
muito jovem se manifestou nele uma forte inclinação para as letras, tendo publicado
os seus primeiros escritos aos 17 anos em A
Parvónia, periódico de curta
existência que fundou com um amigo. Na altura, a pena inclinava-se-lhe para a
poesia, onde eram visíveis influências de Antero de Quental. Dois anos depois,
publicou na revista A Memória, sob o
pseudónimo de Homo, uma série de
textos que deixavam antever um escritor de largos recursos, e que, segundo um biógrafo,
já revelavam Meira como “um escritor da raça de Camilo”.
João de Meira também cumpriu o
destino que, ao tempo, estava traçado para qualquer vimaranense com inclinação
para as letras: dedicou-se aos estudos históricos e fez-se um historiador de inegáveis
méritos. Os seus escritos sobre assuntos históricos ainda hoje permanecem como
referências incontornáveis para qualquer pesquisa da história local de
Guimarães, onde o seu espírito inconformista e irreverente também deixou marcas
indeléveis, ao questionar verdades históricas que então se tinham por
incontestáveis. Se a morte o não tivesse levado tão cedo, teria sido ele o
continuador do Abade de Tagilde na organização dos Vimaranis Monumenta Historica.
Mas há um outro João de Meira em
João de Meira. Ao lado do académico, senhor de uma escrita contida e rigorosa,
perfila-se o autor irónico e dúctil, dotado de um fino sentido de humor e
senhor de uma capacidade de escrita incomum, de que se serve para a imitação
dos estilos de inúmeros escritores, habilidade que esteve na origem de alguns
equívocos memoráveis. São da sua autoria imitações de autores como Gil Vicente,
Sá de Miranda, Herculano, Eça, Antero ou Cesário Verde que ficaram célebres.
Alguns dos seus pastiches chegaram a
ser publicados como obras autênticas por jornais de dimensão nacional. Este
talento de Meira não deixava de causar perplexidade em quem conhecia o sóbrio
professor da Escola Médico-Cirúrgica. Assim aconteceu com aquele que lhe
sucedeu na cátedra, Luís de Pina, que, um dia, escreveu:
“É difícil,
mesmo, conceber como no mesmo indivíduo se emparceirava tão fecunda e feraz imaginação
e tão veemente severidade, com rigor extremo na investigação e exposição da
Verdade em História. O irreal e o real conexos: aquele, expresso
em obras de fantasia, como havemos de lembrar; este, em outras de profunda
reflexão e louvável sentido e desígnio, a desvelar erros incoerentes ou
insuficiências, em puro revisionismo histórico.”
Ficou célebre a série de textos
que, em 1911, João de Meira dedicou ao Professor Maximiano de Lemos, num jantar
que comemorava a sua jubilação do ensino da medicina, que, anos mais tarde,
seria recordado por um dos que nele participaram, Cândido de Pinho:
“No
intervalo de cada um dos pratos João de Meira levantava-se, simples, recolhido
e solene, e, chegando junto de Maximiano recitava-lhe um texto, composto no
estilo dos nossos literatos mais notáveis desde o XII século até agora, alusivo
à sua jubilação. A linguagem, o pensamento, a estrutura da frase, a própria
feição crítica ou dialéctica do autor, achavam-se reproduzidas com uma
exactidão inexcedível. Ninguém diria que não estava ouvindo um trecho
impressivo dum dos nossos mais considerados literatos, prosadores e poetas.
Assim foram desfilando naquele cortejo apoteótico e comemorativo o rei D.
Dinis, Fernão Lopes, Cristóvão Falcão, Luís de Camões, Diogo Bernardes, Padre
António Vieira, Fialho de Almeida, Eça de Queiroz, António Nobre, Xavier de
Novais e outros até concluir por uma engraçada facécia, estilo Conan Doyle, intitulada
Sherlock Holmes no Porto. Era uma verdadeira balada heróica, fazendo lembrar a
balada dos mortos, de Huland.”
Foi nesse
jantar que João de Meira introduziu uma narrativa breve com o título Sherlock Holmes no Porto,
escrita à maneira de Conan Doyle.
(...)
A este texto, assinado por Conan Doyle, seguir-se-iam os dois contos que João de Meira, já então professor da Faculdade de Medicina e Director da Morgue do Porto, assinou com uma pequena derivação do nome verdadeiro do autor das aventuras do detective de Backer Street (Donan Coyle). Vieram a lume em 1912 no primeiro volume da revista Mundo Ilustrado, que então se publicou no Porto e são pioneiros, em Portugal, no seu género da literatura policial. São esses contos, com os títulos “O Cadáver que se evade” e “O Truc de Mr. Raymond”, que se publicam neste volume. À altura, foram entendidos como o prenúncio de uma obra singular.
(...)
A este texto, assinado por Conan Doyle, seguir-se-iam os dois contos que João de Meira, já então professor da Faculdade de Medicina e Director da Morgue do Porto, assinou com uma pequena derivação do nome verdadeiro do autor das aventuras do detective de Backer Street (Donan Coyle). Vieram a lume em 1912 no primeiro volume da revista Mundo Ilustrado, que então se publicou no Porto e são pioneiros, em Portugal, no seu género da literatura policial. São esses contos, com os títulos “O Cadáver que se evade” e “O Truc de Mr. Raymond”, que se publicam neste volume. À altura, foram entendidos como o prenúncio de uma obra singular.
Uma obra que não chegaria a ser
escrita, já que a morte não tardou a levar João de Meira, em 1913, quando mal
completara 32 anos de idade.
António Amaro das Neves,
Posfácio, in João de Meira, Sherlock Holmes no Porto, Sociedade
Martins Sarmento, Guimarães, 2009
0 Comentários