Camilo Castelo Banco |
Na sua obra que leva por título Teatro
do mundo visível, editada em 1743, Frei Bernardino de Santa Rosa discorre
sobre a criação do mundo, a existência de macacos e elefantes no Minho, a
existência e os feitos de gigantes, de pigmeus, de amazonas, do amor dos
delfins pelos homens e pelas delfinas, da mansidão dos ferozes unicórnios
quando se deixam adormecer nos regaços de donzelas… Sobre esta obra, Camilo
Castelo Branco escreveu um texto satírico, que foi incluído no seu livro
“Coisas Leves e Pesadas”, de que aqui fica um excerto.
Existiram ou
não gigantes?
Flávio Josefo disse
que a uns homens arrojados e intrépidos se chamou gigantes. Orígenes escreveu
que gigantes era um cognomento de ateus. Eusébio de Cesareia denomina gigantes
os demónios. O padre Bolducho, que o leitor por força há-de conhecer melhor do
que eu, diz que os gigantes, celebrados na Escritura, eram os varões exímios em
virtudes. Pelo conseguinte, gigantes de corpulência monstruosa, homens como
torres, com olhos de tamanho de janelas, isso é que passava por fabulação de
visionários, até à hora em que o doutor tirou a candeia debaixo do alqueire, e
rompeu com ela trevas dentro até além do dilúvio universal.
Foi assim o
caso: os descendentes de Set, enfeitiçados das formosas filhas de Caim, casavam
com elas.
Eles eram
homens de bem, e elas mulheres de pouco mais ou menos,
como descendentes daquele enorme celerado que matou o irmão à bordoada. Desta
mistura de bons moços com raparigas abrejeiradas nasceram os gigantes. Gigantes
antem erant super terram... enim ingressi sunt filis Dei ad filias
hominum. Foi o castigo que Deus infligiu àqueles casados: deu-lhes filhos
daquele tamanho, levando em mira que eles (isto é o mais provável) lhes
comessem com aqueles grandíssimos dentes quanto os pais ganhassem. O que o
padre não diz é se eles já eram fetos gigantes no ventre das mães, e como as
pobres mulheres se arranjariam com aqueles monstros lá no interior delas.
O dilúvio
afogou a raça destes brutos descomunais; não obstante de vez em quando a
natureza ia dando algum como Nemrod, o caçador, que para apanhar rolas no topo
dos pinheirais precisava de se agachar; também foram gigantes o rei de Bazan, o
Ferragus da história de Carlos Magno, e alguns tambores-mores do nosso
conhecimento.
Gigantes
fêmeas, não falando na Amiota, mulher daquele Ferragus, existiram outras, porque
não podia deixar de ser. O padre não as conheceu de nome; inclina-se, porém, a
crer que as amazonas eram mulheres de bom tamanho.
E, a propósito
de amazonas, conta o padre a seguinte façanha das mulheres portuguesas.
O caso é
digníssimo de crédito, já porque o padre Bernardino o
conta, já porque Manuel de Faria e Sousa o tinha contado. Tirante os
Evangelistas, não conheço historiador verídico superior à Manuel de Faria, a
não ser o padre Bernardino.
Andávamos às
mãos com os galegos, muito antes da era dos Afonsinhos. Éramos quinze mil
homens, afora as mulheres armadas de grevas, coxetes, arnês e capacete. Íamos
já sobre a galegada, atravessado o Minho. Estávamos já cantando vitória em
território deles, quando os alarves depois de bem sovados, nos carregam com o
poder da Galiza em peso, e nos obrigam a retroceder. Nisto, avançam as mulheres
em campo de batalha, malham como em centeio verde naqueles bestiais inimigos e
destroçam-nos. A vitória ficou-se chamando empresa das mulheres.
O padre,
relatada a façanha, volta-se ao célebre castelhano Feijó, de estopadora
memória, admira-se que ele, encomiando o heroísmo das mulheres, não refira
aquele caso, e explica o silêncio: “foi certamente não querer renovar a dor da
sua pátria, conhecendo muito bem que esta gloriosa empresa das nossas
esclarecidas portuguesas, será nos anais da posteridade opróbrio eterno da sua
gente.” Leva nas ventas, meu Feijó!
Camilo Castelo
Branco, Coisas Leves e Pesadas, em
Casa de Luiz José D’Oliveira – Editor Porto, 1867, pp. 104-106
O texto integral de Castelo Branco
pode ser lido ou descarregado clicando na seguinte ligação:
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