A Falperra, como Herculano a viu

Alexandre Herculano

Escrevemos aqui, há alguns anos:


No dia 11 de Agosto de 1854, aquando daquela estada em Guimarães, Herculano escreveu um texto de travo satírico, em que descrevia a sua visão da Falperra, na sua viagem entre Braga e Guimarães, que publicaria no ano seguinte, na revista O Panorama. Enquanto subia o monte, recordava os relatos que escutara na santimonial metrópole, em que se descrevia a Falperra como uma coutada de salteadores e se falava das cenas de espoliação e até de sangue passadas naquele lugar. A certa altura, Herculano questionou o seu acompanhante:

“Mas é singular! — dizia eu — O brado de aflição das vítimas creio que soaria até debaixo das abóbadas da velha catedral. Como se tolerava isto? Que faziam os habitantes de Braga?”

Levantando os olhos ao céu com um meneio sublime de compunção, o nosso companheiro, braguês e clérigo, respondeu melifluamente: “Rezavam!”


Aqui fica um excerto da prosa cáustica de Alexandre Herculano:


Nesta coisa inqualificável, que se dizia acumulada às portas de Braga por uma legião de escaravelhos paleontológicos, roubava-se e assassinava-se há poucos anos. É um facto histórico que a tradição conserva, e de que ainda porventura existem sobradas testemunhas e vítimas. Mas o que pode isso provar a favor da suposta montanha? Nada, absolutamente nada. O que prova é a decadência nacional; prova que vêm de longe as corrupções deste século, e que até o salteador estava já de há muito desmoralizado. Corromperam uma classe nobre e poética, os infanções modernos, os Goesto Ansures da futura aristocracia encostando-os aos bofetes administrativos, encaixilhando-os na casinha fiscal, aninhando-os nos antros judiciais. Depois, quando os régios desagrados do absolutismo, ou as revoluções liberais e o patriotismo esfaimado dos partidos vitoriosos os submeteram de novo aos influxos do seu primitivo destino, eles levaram para a vida anti-social e poética os vícios tacanhos da sociedade e da prosa. Envileceram-se, desnaturaram-se. É a única explicação sensata da existência de salteadores na Falperra. Quem te diria, ilustre Schiller, que no momento em que no teu imortal Die Rauber revelava ao mundo atónito o sublime, o ideal, o quase divino do viver misterioso do salteador, havia homens que, semelhantes às mulheres de Babilónia, se prostituíam desvalijando passageiros sobre esta serra de presepe sem se envergonharem de ouvir ao longe, trazido nas lufadas do vento, o ruído importuno dos cem sinos discordes de Braga, e em vez do rebombo da procela acumula da sobre as agulhas dos cerros, o estrépito do zé-pereira, pio invento da santimonia bracarense para afugentar da Jerusalém minhota os pedreiros-livres e o diabo? Quem te diria, Schiller, que no teu próprio tempo se passavam tais coisas num ponto do globo que, ao menos geograficamente, pertence à civilização e à Europa?

Se não se explicar pela decadência e desmoralização do país esta grande indecência montanística, a história da Falperra ficará sendo uma oração sem verbo, um silogismo sem maior, um homem de Estado com probidade política, um oidium tuckeri, uma câmara de deputados com senso comum, um daqueles fenómenos, em suma, que, ultrapassando a nossa compreensão, desmentem a mais elevada ciência, e diante dos quais o entendimento humano se humilha no seu nada, murmurando só Deus é grande! E as páginas dessa historia falperrina escreveram-se à vista do Bom Jesus do Monte, do Gólgota das artes plásticas, onde se alevantam as três cruzes da arquitectura, da escultura e da pintura; sítio rodeado do terror que geram atrozes e dilatados suplícios, onde, no seio de uma natureza ridente, no meio das belas e puras obras da criação, a mão ímpia do homem escreve há cem anos na pedra, no pau, no barro e na tela insólitas blasfémias contra a poesia das artes, que, como a poesia da palavra, é santa porque vem do Senhor; onde o Cristo, arrastado de novo ao Calvário, se acha convertido em actor de uma nunca vista dança macabra de mau gosto e de ignorância. Foi, sim, a par dessa Gethsemani de todo o artista, de todo o poeta que ali sobe, e cujo coração verte sangue ante o espectáculo de tantos sacrilégios, que a Falperra teve a pretensão estulta e caricata de ser a Selva Negra, a Calábria, ou a Serra Morena da nossa terra?

non ut placidis cocant immitia, non ut Serpentes avibus geminentur.

Nunca na minha vida senti tentação tão forte de cometer uma ilegalidade e uma violência. Por três vezes esteve a sair-me da boca uma ordem ao arrieiro para me meter na mala a Falperra. Levá-la-ia comigo para Lisboa, e receberia cada vez que para ela volvesse os olhos, uma lição salutar contra os ímpetos da vaidade. Dir-me-ia a cada momento a Falperra o que são e o que valem as reputações em Portugal.


Para a leitura integral do texto de Herculano (vale bem a pena), pode descarregá-lo a partir da seguinte ligação:

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