Fotografia de Francisco Martins Sarmento. |
O sábio, e o arqueólogo
sobretudo, sempre me apareceram sob este aspecto singular: homens que, à força
de conviverem com a ciência hirta e as secas pedras, tinham endurecido o
coração; homens de método e experiência, desavindos de tudo o que na vida e na
natureza é simples e emotivo: árvores, amores, sol, o quinhão dos poetas enfim.
Depois, porém, que conheci Martins Sarmento comecei a duvidar: estava diante
dum sábio a valer, e ao mesmo tempo — o que é mais raro e mais apreciável — dum
grande homem de coração e carácter.
Raul Brandão, 1900
Nascido
no seio de uma família abastada de Guimarães, Francisco Martins Sarmento, mais
do que de bens de fortuna pessoal, era dotado de um espírito inquieto que o
empurrava para a cultura e o conhecimento. Era, no sentido original da palavra,
um filósofo.
Leitor
compulsivo, vivia rodeado de livros. Os seus estudos encaminharam-no para a
História. Em 1868, começou a cultivar a arte da fotografia. Em meados da década
de 1870, começou a estudar metodicamente a Citânia de Briteiros. Os avanços dos
seus estudos foram registados sistematicamente nos seus apontamentos e nas suas
fotografias.
Dotado
de um notável espírito de observação e de um raciocínio penetrante, a sua
experiência de caçador de perdizes e coelhos armava-o com resistência
suficiente para aguentar longas caminhadas exploratórias. De novo caçador, mas
agora de velharias, Sarmento esquadrinhou, ao longo de duas décadas, todo o
território do Noroeste português, perscrutando nas pedras e na tradição oral a
memória do passado que o tempo não tinha apagado. As notas dessas excursões e
as notícias que a sua rede de informadores lhe fazia chegar foram vertidas para
cadernos de apontamentos, cujas páginas revelam um homem talentoso e sagaz que,
movido por uma imensa curiosidade intelectual, é o sujeito da construção do seu
próprio conhecimento. Naquelas páginas observámos o percurso de alguém que, de
simples curioso pelas velharias de outros tempos, sustentado por um espírito de
pesquisador amador e por uma paixão de antiquário, se transforma num arqueólogo
de renome internacional.
Há 130
anos, quando os seus conterrâneos quiseram demonstrar-lhe o seu reconhecimento,
Sarmento recusou o monumento que lhe pretendiam erguer. Acabaria por aceitar a
homenagem, com a condição de que assumisse a forma de um organismo vivo que
contribuísse para a elevação cultural das gentes da sua terra. Assim nasceu a
Sociedade Martins Sarmento, promotora da instrução popular. Porque, como
escreveu Raul Brandão, Sarmento, “além dum sábio e dum grande coração, foi um
homem que olhou para o futuro”.
(Texto escrito para o caderno de divulgação da exposição O Fotógrafo Martins Sarmento e do documentário Martins Sarmento, o tempo passado é já tempo futuro, editado pela Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura)
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