A lenda da Oliveira


A oliveira (à direita), numa gravura de 1861

A tradição hoje mais corrente acerca da oliveira da Praça fala num ramo trazido do olival que, em S. Torcato, dava o azeite com que se alumiava o santo e que, por milagre, um dia ganhou folhas e ramos. Mas, como já vimos antes, há uma outra lenda que associa o milagre da oliveira à entronização de Wamba como rei dos visigodos, no século VII. Aqui fica esta lenda, traduzida de uma publicação inglesa de meados do século XIX:

A árvore milagrosa de Guimarães
Uma lenda de Portugal, pelo padre Manuel.*

O reino gótico de Espanha, fundado pelo ilustre Eurico, que se estendeu por toda a Península, dos Pirenéus até às margens do Lusitânia, já durava há quase dois séculos, quando, com a morte do piedoso Recesvindo, os nobres se viram na necessidade de escolher um sucessor para o trono vago.

Esta era uma questão difícil, por todos os lados para onde viraram seus olhos para encontrar alguém digno de governar (o que não era uma tarefa fácil) entre a nobre raça dos godos; mas parecia provável que eles deveriam rolar os olhos para lá das suas órbitas, até que algum génio brilhante entre eles sugerisse que deveriam buscar ajuda e conselho da cabeça infalível da Igreja, para os tirar do lodaçal da dúvida e da dificuldade em que estavam mergulhados. Assim o fizeram. O sucessor de São Pedro apontou para o Oeste.

“Lá”, disse ele, “ireis encontrar um homem, factus ad wiguem, como diz Horácio, isto é, um homem bom, nobre, mas afável; sábio, mas humilde; piedoso e dócil, mas corajoso e guerreiro; procurai-o, pois ele é bem capaz de governar estes reinos. Wamba é o seu nome. Fazei-o o vosso rei, obedecei a este mandato e o Céu fará prosperar o seu governo.”

Imediatamente, foram despachados oficiais em todas as direcções para procurarem o monarca desejado. Andaram em vão de lugar em lugar, até que chegaram à bela província do Minho, o paraíso da Lusitânia. Aqui receberam a notícia de que, num dos seus vales mais pitorescos e férteis, morava um homem com o nome daquele a quem procuravam. Dirigiram-se imediatamente ao seu solar, mas ele estava longe de casa, e assim se entretiveram, enquanto esperavam, fazendo perguntas sobre ele pro et con. Ele tinha os pros. Descobriram que era um homem de grande erudição e de nascimento nobre, mas tão devotado à labuta pacífica da agricultura, que nenhuma sedução o poderia afastar dela, a ele que já estava muito além do auge da vida, e que era de um carácter muito benigno e suave. Concordaram imediatamente que este deveria ser o homem que o Papa havia indicado.

Entretanto, Wamba soube do propósito da sua vinda, e, consequentemente, recusou-se a regressar a casa até que partissem. Eles, no entanto, não eram homens para se deixarem derrotar nas suas intenções e, tendo dito aos vizinhos que haviam sido enviados para fazerem Wamba rei dos godos, todas as pessoas principais se juntaram à sua procura, pois esperavam que, sendo ele elevado a tal dignidade, tomasse naturalmente medidas para aumentar a prosperidade da sua terra natal e proporcionar fortuna no mundo aos seus antigos companheiros.

Alguns cronistas tolos afirmam que Wamba era um mero simplório, pobre e iletrado, e que assim o consideravam até então os camponeses da província, mas este é um grande erro, como a verdadeira história do tempo irá provar.

Os oficiais, que eram todos nobres de elevada condição, esperaram alguns dias em casa de Wamba, na expectativa do seu regresso, até que, finalmente, quando a sua paciência estava quase esgotada, um olheiro trouxe a notícia de que ele estava a caminho de casa com um grande rebanho de gado, que havia comprado numa feira vizinha. Então, começaram imediatamente a procurá-lo. Encontraram-no naquela parte do vale onde hoje está a bela cidade de Guimarães, abaixo de um monte elevado, no qual, vários séculos depois, o renomado Afonso Henrique construiu uma fortaleza, cujas magníficas ruínas existem até hoje.

Naqueles tempos bélicos, todos andavam armados, até mesmo o pastor observava o seu rebanho na encosta da montanha com o seu arco e lança, sempre pronto a proteger o seu dever, tanto contra os salteadores humanos, como contra o lobo que espreita. Assim, Wamba estava armado com uma lança dura e, aguardado por um numeroso bando de apoiantes, chegou na retaguarda de um magnífico rebanho de grandes animais de chifres curtos. Aqui, a tradição está mais uma vez em falta, por se acreditar falsa e erroneamente que ele levava um pau (um aguilhão) na mão, como se um homem tão grandioso tocasse, pessoalmente, o seu gado preguiçoso. Considerando que a história menciona claramente que levava uma lança de ponta brilhante e de tal forma que seria ainda mais desagradável retirá-la de um corpo do que cravá-la nele. Tão logo os nobres o viram e reconheceram pela sua barba branca e longa, estatura elevada e comportamento digno, o homem que procuravam, avançaram rapidamente e, postos de joelhos, ofereceram-lhe o diadema real.

“Façam-me rei, pois!” exclamou, “não eu, acreditem-me. Deixem-me cuidar das minhas preocupações com a agricultura e procurem alguém que seja suficientemente tolo para querer trocar o sossego e a segurança de uma vida pacata pela canseira e o perigo de um trono.”

Tendo-se assim apresentado, com mais honestidade do que civilidade, preparava-se para retomar a sua viagem.

Surpreendidos e irritados, os nobres não sabiam o que fazer, quando um deles, Duque Wifredo de seu nome, se levantou e, agarrando Wamba pela garganta e colocando o seu punhal numa proximidade desagradável, exclamou:

“O quê! Depois de nos dar todo este trabalho, você acha que devemos ser destituídos do nosso rei, que o próprio Papa indicou? Você será o nosso rei, quer goste ou não.”

“Homem tolo!” disse Wamba, atirando ao duque um tal olhar que, embora a sua genealogia diga que media seis pés seis, naquele momento o fez sentir extremamente pequeno, “que eu não vou ser o vosso rei, não vou”, impôs o seu argumento conclusivo, empurrando o exigente duque para uma distância de muitos metros.

Nada intimidados por esta circunstância, os outros nobres e as outras pessoas, reunidos em volta de Wamba, pressionavam-no, pedindo que ele se tornasse seu rei.

“Pela minha palavra, cavaleiros, este é um pedido muito estranho que me fazem. Aqui estou eu, numa fase avançada da vida, nada mais desejando do que paz e tranquilidade, e vocês têm a crueldade inconcebível de desejarem que tome sobre os meus ombros todos os cuidados da realeza. Ide-vos! Ide-vos! Vós falais loucamente. “

Apesar de sua recusa, as pessoas continuaram a pressioná-lo, levantando gritos de “Viva Wamba, rei dos godos! Viva o rei Wamba I” e não o deixavam mover-se do pequeno monte em que estava. O que o afligia ainda mais era que mesmo os seus seguidores mais próximos, que esperava ter do seu lado, ajudando-o a escapar, se juntaram ao resto da multidão nas suas vociferações. Por fim, irritado para além da medida pela insistência deles, gritou, ao mesmo tempo que fincava no chão a sua longa lança:


“Eu vos digo, cavaleiros, que podeis gritar até ao dia do juízo final, se assim vos agrada, mas até que a minha velha e rija lança se torne numa árvore, eu nunca serei o rei dos godos, assim me ajude a Virgem Santíssima e todos os santos na minha extrema necessidade.”

A essas palavras, o silêncio invadiu a multidão e o desespero apoderou-se dos peitos de nobres e camponeses, porque bem sabiam que ele nunca iria quebrar tamanho juramento e a única alternativa seria procurar um rei noutro lugar, o que não poderiam encarar com nada mais do que horror, considerando o desgaste da mente e do corpo a que já haviam sido sujeitos neste assunto; além disso, ficaram curiosos por saber o que poderia ter significado a recomendação do Papa de um homem que aparentemente se tinha, por tão grande juramento, colocado de fora da dignidade que lhe ofereciam. Sua Santidade poderia ter sido tomada por uma espécie de “visão”, e exclamando na capa pontifícia: “Ali está ele, não desejais levá-lo?”. O sentimento era de perplexidade e é impossível dizer até que ponto o seu poder e carácter de infalibilidade poderia ter sido abalado, se não fosse pelo que se seguiu. De crista caída e melancólicos, estavam prestes deixar Wamba prosseguir o seu curso sem o molestar, quando os mais próximos da lança gritaram de repente com sinais de alegria: “Um milagre! Um milagre!”

Todos os olhos se voltaram ansiosamente para Wamba quando, para sua surpresa, viram a velha lança dura e sem seiva, que Wamba tinha enterrado no chão, brotando folhas e lançando ramos. A reputação do Papa subiu de imediato: o processo de vivificação avançou e, em poucos minutos, havia no topo do monte uma árvore bonita e fértil. Wamba ficou tão perplexo como os restantes e, já não tendo qualquer desculpa para recusar a dignidade que, aliás, a mão do Céu tinha tão miraculosamente apontado como seu direito e seu dever, concordou em tornar-se o rei dos godos. Por muitos anos governou, feliz e prosperamente, o seu povo,  que nunca se arrependeu da escolha que fez e, desde então, em casos de dúvida e dificuldade, sempre se escutou o conselho de Sua Santidade.

A árvore permanece, até hoje, no centro da cidade de Guimarães e é uma prova irrefutável, se alguém dela necessitar, da verdade do milagre. Os habitantes piedosos, sensíveis aos benefícios inestimáveis que resultam da presença de tão milagrosa uma árvore, tratam-na com a maior veneração e cercaram-na com um gradeamento de ferro para a preservar de danos. Um pomenor da maravilha é que ela não aumentou muito de tamanho nem mudou de aparência desde que Wamba a plantou, tanto assim que os cépticos afirmam que a árvore original morreu há muito tempo e que a planta actual é uma plantinha renovada ocasionalmente à noite pelos padres da catedral vizinha, mas essa ideia é apenas digna dos infiéis e dos hereges e deve ser questionada por todo o católico verdadeiro e piedoso.

A igreja e o mosteiro foram imediatamente construídos por Wamba perto daquele local, à volta do qual, com o decorrer do tempo, surgiu a bonita e próspera cidade Guimarães.

*Deverá ser concedida alguma indulgência a algumas das expressões deste conto, se se recordar que foi escrito por um frade católico romano de outros tempos. – Ed.

William H.G. Kingston, Tales for all ages, Londres, 1863, pp. 200-204

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1 Comentários

O Galaico disse…
Bonita lenda pouco conhecida do povo.

Pena as tradicionais gaffes de chamar "Lusitânia" ao Minho e Norte de Portugal.

Nunca fizemos parte da Lusitânia que, esta, sempre se situou, administrativamente, a sul do Douro. Etnicamente, ainda mais afastada o foi.

O primeiro reino medieval da Europa foi fundado na Gallaecia.

O Noroeste Ibérico, do Douro ao mar Cantábrico, com capital em Braga e palácio primo no monte da Santa Marta das Cortiças (cujo parte ainda pertence a Gimarães) iniciou o período medieval através do reino Suevo e no território que hoje se reconhece como o da Cultura Castreja.

Pequenos pormenores que tornam mais singular a região em relação às outras e que, por norma, passam despercebidas pela cortina de fumo que uma educação centralista obriga.