A propósito da falta de chuva neste
Inverno, amenizada nos últimos dias, muito temos ouvido falar de mudanças
climáticas. Com frequência, ouvimos dizer, porventura com alguma ligeireza, que
“nunca se viu nada assim”. Tanto quanto sei, as inconstâncias meteorológicas
são uma realidade de todos os tempos, como julgo que se pode concluir pela leitura
do texto que vai abaixo, que escrevi em 2007 para uma publicação da Vimágua:
A água do Céu
Tendemos a acreditar que, no passado,
a meteorologia teria, na sucessão das estações do ano, uma regularidade aproximada
da constância do tempo cronológico. Ao Verão quente e seco, sucedia o Outono,
mais fresco e chuvoso, que acabava no Inverno, que era frio e molhado, a que se
seguia a Primavera, de tempo mais ameno, se bem que húmido. O ritmo da vida dos
homens seguiria a marcha do tempo cronológico e meteorológico e o calendário
agrário ajustava-se a essa regularidade. Esta visão idealizada do clima de
outrora está longe de corresponder à realidade vivida pelos nossos
antepassados.
A verdade é que as inconstâncias
meteorológicas não são, longe disso, apenas uma realidade dos nossos dias. Aliás,
no passado, os seus efeitos eram bem mais nefastos do que nos nossos dias.
Olhando para os registos de que dispomos do passado, facilmente se conclui que
a tal irregularidade dos elementos que compõem o clima era, afinal, bastante
normal.
No passado, o maior problema que
afectava a população da região de Guimarães, como a de qualquer outro lugar, no
que respeita aos elementos meteorológicos, prendia-se com a água, ou seja, com
a pluviosidade: muitas vezes, a chuva faltava, secando a terra e impedindo que frutificasse;
outras caía em excesso, inundando os campos, destruindo sementeiras e
dificultando a recolha dos frutos.
Para o passado remoto, não possuímos
registos meteorológicos quantitativos precisos. Não obstante, dispomos de
outros elementos que nos permitem perceber até que ponto as variações
climáticas afectavam a vida das gentes. É possível compilar, por exemplo, nos
registos existentes nos nossos arquivos, informação acerca das procissões de
preces e das penitências a que as populações recorriam para intercederem para
que chovesse ou para que fizesse sol. Partindo destes registos, podemos
construir um exemplo esclarecedor: um homem que tivesse nascido em Guimarães em
1821 e que tivesse gozado uma longevidade excepcional, para o tempo,
sobrevivendo até ao último dia do século em que nasceu, dos oitenta anos que
teria durado a sua existência, em trinta e dois registaram-se crises
meteorológicas. Ao longo da sua vida, teria sido testemunha, porventura
participante, de inúmeras manifestações em que as gentes se apegavam ao seu
último recurso, a fé, para implorarem chuva, em tempo de seca, ou rogarem por sol,
em tempo em que a chuva não parava de cair. Algumas dessas crises, pelas suas
consequências, deveriam ter ficado profundamente gravadas na sua memória.
Assim teria sucedido, muito
provavelmente, com as inclemências meteorológicas do ano de 1838. O Inverno iniciado
em 1837 foi marcado por muitas chuvas, que começaram a cair com particular
inclemência no início de Dezembro. No final de Fevereiro, um grande temporal provocaria
cheias nos rios da região, havendo então notícia de um acidente com um caixeiro
que foi arrastado pelas águas, quando atravessava o rio Ave, no pontilhão das Taipas.
O homem salvou-se, a custo, mas perdeu-se o macho em que viajava. Pelos dias
que se seguiram, continuou a chuva, acompanhada por trovoadas e quedas de
granizo. No dia 16 de Maio, como consequência da chuva e da água que se
acumulava no solo, aluiu parte da ponte de Santa Luzia. No final desse mês, o
cónego José Pereira Lopes, que deixou um precioso registo da vida em Guimarães
ao longo de várias décadas do século XIX, anotaria no seu diário:
Até
ao fim deste mês, houve grandes e copiosas chuvas, de maneira que as chuvas que
houve desde a Primavera até este tempo, juntas com as que houve antes da Primavera,
fizeram que este ano fosse um ano de tanta chuva, como não havia exemplo há
muitos anos.
O mau tempo continuaria, até que, no
dia 3 de Julho, Pereira Lopes registou no seu diário: foi o primeiro dia em que não esteve tanto frio. Os estragos da
longa invernia tinham sido enormes. Mas aquele terá sido sol de pouca dura, já
que, em meados de Novembro, se realizaram preces na Colegiada e em outras
igrejas da vila, pedindo sol, para se
poder fazer as colheitas, que estavam uma grande parte por fazer, por causa das
muitas e continuadas chuvas que tinham havido em todo o Outono, não se tendo
recolhido uma terça parte do pão.
Esta crise iria prolongar-se até ao
pino do Verão de 1839. No dia 1 de Agosto, Pereira Lopes escreveu no seu diário
que aquele foi o primeiro dia de calor
que houve neste ano (apenas tinha havido um ou outro dia mais quente) tendo
havido na primavera e parte do estio chuvas e bastante frio.
O ano de 1847 foi igualmente terrível,
mas, desta vez, por causa da falta de chuva. Por essa altura, ainda o cónego Pereira
Lopes escrevia o seu diário. No mês de Julho, sucederam-se na vila as preces ad petendam pluviam, implorando-se por
chuva, pois a seca e o calor tinham impedido que nascessem os restivos, não havendo esperanças de que as terras
secas dessem fruto algum.
No dia 3 de Agosto, uma procissão
correu as ruas, com algumas irmandades e
bastante povo, pedindo que Deus Nosso Senhor desse chuva. Todos os dias
havia orações nas igrejas, porque a seca era grande, a ponto de se recear uma grande falta de pão. Novas procissões
percorreram as ruas da cidade no dia 5 e no dia 11. No dia 12, ao princípio da
tarde, entrou em Guimarães a imagem do Senhor de Ínfias, acompanhada de muitas irmandades da aldeia e imenso povo, até das
Caldas de Vizela e outras povoações, ao quais se lhes reuniu muita gente da
vila. No dia 20, voltou a chover em Guimarães. No dia 25, a milagrosa imagem
do Senhor de Ínfias, que tinha estado recolhida na igreja das Dominicas,
regressaria à sua ermida, pelo mesmo caminho que percorrera quando viera para Guimarães,
indo acompanhada por imenso povo, tanto da
vila, como da aldeia, assim como com as mesmas Irmandades que a tinham
acompanhado para a vila. Mas a inclemência do tempo ainda não tinha
terminado: só no início de Outubro é que voltaria a chover em Guimarães, pondo
termo a uma seca como já há muito tempo
não lembrava.
As consequências tinham sido
terríveis. Durante o mês de Agosto, tinha morrido, segundo Pereira Lopes, uma imensidade de crianças de bexigas e
diarreias, havendo dias que morriam oito e dez. No dia 3 de Setembro, foram
sepultadas três crianças, das muitas que tinham
sido vítimas das moléstias da quadra, bexigas e diarreia. O cronista
daqueles dias de desastre acrescentava que pessoas
adultas tinham morrido algumas, mas não foram muitas, mas crianças não havia um
só dia que não morressem muitas. As crianças eram, de facto, as mais vulneráveis
às afecções de carácter infeccioso que facilmente se propagavam nos períodos de
calor e de seca, em que as águas escasseavam e em que se recorria, muitas vezes,
ao abastecimento com águas impróprias para consumo humano.
As contingências meteorológicas,
especialmente as secas cíclicas que devastaram esta região em finais do século XIX,
contribuíram significativamente para que se procurassem novas soluções de
captação, condução, tratamento e distribuição de água susceptíveis de assegurarem
o abastecimento público sem descontinuidades, minimizando os efeitos de crises
que, no futuro, poderiam ter efeitos catastróficos.
in Mãe-d’Água
– Centenário do abastecimento público de Guimarães, ed. Vimágua, Guimarães,
2007, pp. 74-76
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