Érico Veríssimo |
O almoço prosseguia. As conversas
animavam-se. A Festada de Guimarães brilhava. Terminado o almoço — ouvidos e
pronunciados vários discursos — fui cumprimentar os membros do conjunto e
agradecer-lhes pelo espectáculo. Depois manifestei aos nossos anfitriões o
desejo de andar a pé pelas ruas da tradicional cidade. Queríamos ver suas
antigas muralhas, seus solares, arcadas e escalinatas. Não sei por que nos
levaram a um museu arqueológico. Nada mais indigesto do que um museu desse tipo
depois dum farto brodio. Deixamo-nos levar, que remédio! Gastamos nessa visita
mais tempo do que devíamos, olhando sem genuíno interesse objectos de pedra de
passadas civilizações, enfim, coisas que só podem ser interessantes para os
estudiosos do assunto, e assim mesmo com tempo, muito tempo. E percorrendo as
salas desse museu Mafalda e eu, desatentos e contrariados, víamos através das
janelas que a tarde aos poucos envelhecia, o sol caía e o que queríamos era ir
para a rua ver o que restava da Guimarães medieval, meter-nos pelos seus becos
crepusculares, olhar as faces de seus habitantes. Terminou finalmente a penosa
visita ao museu. Percebemos que o sol ainda não se sumira de todo. Renasceu-nos
a esperança de poder ver alguma coisa da cidade. Mas qual! No momento seguinte
arrastaram-nos para a sede dum clube de futebol juvenil, o Desportivo Francisco
de Holanda, onde seus rapazes nos mostraram as taças de ouro e prata ganhas
pela sua equipe em vários campeonatos, como também me pediram para deixar uma
"mensagem" escrita no Livro de Ouro do Desportivo. Alinhavei meia
dúzia de frases desenxabidas sob as quais assinei meu nome. E que Deus me
perdoasse!
Saímos para o ar livre. Restam no
poente alguns tons de vermelho, roxo e rosa. Acendem-se as luzes de Guimarães.
Sou informado de que vamos ser levados a ver numa visita-relâmpago um dos mais
antigos castelos de Portugal. Seja! Um dos próceres de Guimarães é o nosso guia
e aqui está sentado a meu lado, num automóvel em movimento. Em breve avisto o
dramático perfil do castelo, com suas torres quadradas e suas ameias.
Compreendo que vamos subir uma de suas escadas. Coragem! Noto que os degraus
são muito altos. Os portugueses de antigamente deviam ser uns homenzarrões de
longas pernas... Meu guia sobe depressa à minha frente, falando sempre, sem
revelar a menor canseira na voz ou no ritmo dos passos. (No entanto deve ser
uns dez anos mais velho que eu.) Começo a sentir uma ardência na garganta, uma
opressão no peito... Numa das salas do castelo por onde ainda deve vaguear em ermas
noites o fantasma de D. Afonso Henriques, faz um frio penetrante e húmido. Meu
cicerone continua a contar de como D. Afonso rompeu relações com a própria mãe,
cujos exércitos o seu próprio derrotou. Graças a essa vitória nascera a
nacionalidade portuguesa! Não tenho ânimo nem para dizer: Viva!
Por fim, descemos. Mafalda teve a
sabedoria de não nos acompanhar na escalada. Despedimo-nos dos amigos, entramos
no B.M.W. e deixamos Guimarães sem tê-la visto como desejávamos e ela merecia.
E agora rodamos na direcção de Vila Real. Sei que daqui para diante os caminhos
serão mais íngremes e perigosos, pois estamos começando a subir a Serra do
Marão.
(…)
"Queres comer alguma
coisa?" Espalmo as mãos sobre o estômago. "Sinto ainda aqui o
memorável almoço de Guimarães. Como diria nosso Eça, 'comi como um abade'."
(Érico Veríssimo, Solo de Clarineta, Editora Globo, Porto
Alegre, 1975)
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