Érico Veríssimo: um almoço em Guimarães em 1959 (3)


Érico Veríssimo

O almoço prosseguia. As conversas animavam-se. A Festada de Guimarães brilhava. Terminado o almoço — ouvidos e pronunciados vários discursos — fui cumprimentar os membros do conjunto e agradecer-lhes pelo espectáculo. Depois manifestei aos nossos anfitriões o desejo de andar a pé pelas ruas da tradicional cidade. Queríamos ver suas antigas muralhas, seus solares, arcadas e escalinatas. Não sei por que nos levaram a um museu arqueológico. Nada mais indigesto do que um museu desse tipo depois dum farto brodio. Deixamo-nos levar, que remédio! Gastamos nessa visita mais tempo do que devíamos, olhando sem genuíno interesse objectos de pedra de passadas civilizações, enfim, coisas que só podem ser interessantes para os estudiosos do assunto, e assim mesmo com tempo, muito tempo. E percorrendo as salas desse museu Mafalda e eu, desatentos e contrariados, víamos através das janelas que a tarde aos poucos envelhecia, o sol caía e o que queríamos era ir para a rua ver o que restava da Guimarães medieval, meter-nos pelos seus becos crepusculares, olhar as faces de seus habitantes. Terminou finalmente a penosa visita ao museu. Percebemos que o sol ainda não se sumira de todo. Renasceu-nos a esperança de poder ver alguma coisa da cidade. Mas qual! No momento seguinte arrastaram-nos para a sede dum clube de futebol juvenil, o Desportivo Francisco de Holanda, onde seus rapazes nos mostraram as taças de ouro e prata ganhas pela sua equipe em vários campeonatos, como também me pediram para deixar uma "mensagem" escrita no Livro de Ouro do Desportivo. Alinhavei meia dúzia de frases desenxabidas sob as quais assinei meu nome. E que Deus me perdoasse! 

Saímos para o ar livre. Restam no poente alguns tons de vermelho, roxo e rosa. Acendem-se as luzes de Guimarães. Sou informado de que vamos ser levados a ver numa visita-relâmpago um dos mais antigos castelos de Portugal. Seja! Um dos próceres de Guimarães é o nosso guia e aqui está sentado a meu lado, num automóvel em movimento. Em breve avisto o dramático perfil do castelo, com suas torres quadradas e suas ameias. Compreendo que vamos subir uma de suas escadas. Coragem! Noto que os degraus são muito altos. Os portugueses de antigamente deviam ser uns homenzarrões de longas pernas... Meu guia sobe depressa à minha frente, falando sempre, sem revelar a menor canseira na voz ou no ritmo dos passos. (No entanto deve ser uns dez anos mais velho que eu.) Começo a sentir uma ardência na garganta, uma opressão no peito... Numa das salas do castelo por onde ainda deve vaguear em ermas noites o fantasma de D. Afonso Henriques, faz um frio penetrante e húmido. Meu cicerone continua a contar de como D. Afonso rompeu relações com a própria mãe, cujos exércitos o seu próprio derrotou. Graças a essa vitória nascera a nacionalidade portuguesa! Não tenho ânimo nem para dizer: Viva! 

Por fim, descemos. Mafalda teve a sabedoria de não nos acompanhar na escalada. Despedimo-nos dos amigos, entramos no B.M.W. e deixamos Guimarães sem tê-la visto como desejávamos e ela merecia. E agora rodamos na direcção de Vila Real. Sei que daqui para diante os caminhos serão mais íngremes e perigosos, pois estamos começando a subir a Serra do Marão.
(…)

"Queres comer alguma coisa?" Espalmo as mãos sobre o estômago. "Sinto ainda aqui o memorável almoço de Guimarães. Como diria nosso Eça, 'comi como um abade'."

(Érico Veríssimo, Solo de Clarineta, Editora Globo, Porto Alegre, 1975)

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