Érico Veríssimo: um almoço em Guimarães em 1959 (2)


Érico Veríssimo

No momento em que escrevo estas lembranças não consigo explicar a mim mesmo como e por que só fomos dar com os costados em Guimarães depois das três da tarde. Nossos anfitriões estavam todos reunidos à nossa espera no restaurante Jordão: escritores, jornalistas, artistas, comerciantes, membros das profissões liberais — todos cordiais e compreensivos prontos a desculpar-nos pelo grande atraso. "Ora e essa, homem!, isso acontece. Só estávamos um poucochinho apreensivos, pensando que lhes pudesse ter acontecido algum contratempo no caminho.

Sentamo-nos à mesa. O grupo folclórico, a Festada de Guimarães, composto de membros duma única família de camponeses, havia sido contratado para tocar, cantar e dançar durante o almoço. Era um alegre bando cujos componentes — filhas, filhos, genros, noras, em matéria de idade iam desde o avô de setenta e poucos anos até um neto de sete ou oito. As mulheres trajavam blusa de linho branco, saias de veludo negro bordadas de contas de vidro, meias brancas de algodão. O trajo dos homens consistia numa camisa branca, um colete preto com enfeites encarnados e botões dourados de metal, faixa vermelha ao redor da cintura, calças negras e botinas de salto alto; na cabeça um chapéu preto de aba larga e copa redonda. O atencioso cavalheiro que estava sentado à mesa a meu lado, me disse: "São todos gente simples do campo. O avô, que dirige e ensaia o grupo, é um porqueiro". A orquestra da festa era formada por três violas, uma rabeca, uma clarineta e um cavaquinho. O grupo começou seu programa cantando e dançando a "Margarida Moleira". O conjunto era de primeira ordem, bom ritmo, afinadas vozes. Mafalda, que estava à minha direita, confessou num sussurro a sua fome e perguntou-me se eu já vira o possante cardápio. Apanhei um e examinei-o. Bacalhau assado com batatas. Arroz de frango ao molho pardo. Cabrito assado com grelos. Sobremesas? Tortas de Guimarães, massa folhada com recheio de ovos, amêndoa e abóbora. 

Começaram a aparecer os pratos. O bacalhau com batatas estava submerso num dourado mar de azeite. A galinha de cabidela teve o poder de evocar — apesar de todas as distâncias no tempo e no espaço — as grandes cozinheiras de minha infância e adolescência cruz-altenses: Laurinda, Paula, Arcádia...

(Érico Veríssimo, Solo de Clarineta, Editora Globo, Porto Alegre, 1975)
[continua]

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