Érico Veríssimo |
No momento em que escrevo estas
lembranças não consigo explicar a mim mesmo como e por que só fomos dar com os
costados em Guimarães depois das três da tarde. Nossos anfitriões estavam todos
reunidos à nossa espera no restaurante Jordão: escritores, jornalistas,
artistas, comerciantes, membros das profissões liberais — todos cordiais e
compreensivos prontos a desculpar-nos pelo grande atraso. "Ora e essa,
homem!, isso acontece. Só estávamos um poucochinho apreensivos, pensando que
lhes pudesse ter acontecido algum contratempo no caminho.
Sentamo-nos à mesa. O grupo
folclórico, a Festada de Guimarães, composto de membros duma única família de
camponeses, havia sido contratado para tocar, cantar e dançar durante o almoço.
Era um alegre bando cujos componentes — filhas, filhos, genros, noras, em
matéria de idade iam desde o avô de setenta e poucos anos até um neto de sete
ou oito. As mulheres trajavam blusa de linho branco, saias de veludo negro
bordadas de contas de vidro, meias brancas de algodão. O trajo dos homens
consistia numa camisa branca, um colete preto com enfeites encarnados e botões
dourados de metal, faixa vermelha ao redor da cintura, calças negras e botinas
de salto alto; na cabeça um chapéu preto de aba larga e copa redonda. O
atencioso cavalheiro que estava sentado à mesa a meu lado, me disse: "São
todos gente simples do campo. O avô, que dirige e ensaia o grupo, é um
porqueiro". A orquestra da festa era formada por três violas, uma rabeca,
uma clarineta e um cavaquinho. O grupo começou seu programa cantando e dançando
a "Margarida Moleira". O conjunto era de primeira ordem, bom ritmo,
afinadas vozes. Mafalda, que estava à minha direita, confessou num sussurro a
sua fome e perguntou-me se eu já vira o possante cardápio. Apanhei um e
examinei-o. Bacalhau assado com batatas. Arroz de frango ao molho pardo.
Cabrito assado com grelos. Sobremesas? Tortas de Guimarães, massa folhada com
recheio de ovos, amêndoa e abóbora.
Começaram a aparecer os pratos. O
bacalhau com batatas estava submerso num dourado mar de azeite. A galinha de
cabidela teve o poder de evocar — apesar de todas as distâncias no tempo e no
espaço — as grandes cozinheiras de minha infância e adolescência cruz-altenses:
Laurinda, Paula, Arcádia...
(Érico Veríssimo, Solo de Clarineta, Editora Globo, Porto
Alegre, 1975)
[continua]
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