A "justiça de Guimarães", segundo o Padre António Vieira (aliás, Padre Manuel da Costa)

Os responsáveis pelo jornal Justiça de Guimarães colheram o título daquele periódico na obra atribuída ao Padre António Vieira (há discussão quanto à autoria deste livro, actualmente atribuído ao Padre Manuel da Costa, também seiscentista) cujo título completo é Arte de furtar: espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos reinos de Portugal, escrita em meados de seiscentos e publicada em Amesterdão um século depois. Ao que se depreende, a expressão "justiça de Guimarães" tem o sentido de justiça cega e inclemente. Aqui se transcreve o excerto da Arte de Furtar onde aparece aquela expressão:

Se Deus castigara logo, quantos o ofendem mortalmente, já não houvera gente no mundo, e há Desembargadores que dão sentenças de morte, por sustentar capricho. E se na sua mão estivera, despovoariam o Reino. Vi um Padre da Companhia de Jesus propor uns embargos, para livrar um pobrete da forca: falava com um destes Ministros, que era o Relator, na escada da Relação; e alegava-lhe, que o réu não pecara mortalmente no homicídio, por quanto fora motus primo primus[i], e em sua justa defesa; e que tinha sua mercê naquela razão, de que pegar para favorecer a Misericórdia. Perguntou-lhe o Desembargador muito sábio, se era Teólogo? Respondeu o Padre muito modesto, que sim. Pois é Teólogo (disse o Desembargador já picado) e alega-me que pode um homem matar outro sem pecar mortalmente! O Padre lhe instou muito sereno: v. m. vai agora matar um homem, porque vai sentenciar ele à morte, e cuida que vai fazer um acto de virtude: e o algoz, que o há-de enforcar, não tem necessidade de se confessar disso: um bêbado, um doido e um colérico matam vinte homens, e não pecam: logo bem digo eu, que pode um homem matar outro sem pecar. Não soube o senhor Doutor responder a isto com toda a sua garnacha, e deu as costas, e levou avante a sua opinião, sem querer amainar da sua teima. Eis aqui como morrem muitos ao desamparo, entregues ao cutelo destes sábios, porque não têm quem acuda por eles, nem cabedal, para lhes modificar a pena, que é a sua espada, e às vezes unha. Nem me digam zelosos, que convém castigar-se tudo com rigor, para que haja emenda; porque lhe direi, que o seu zelo, quando mais se refina, é como o do outro, de quem disse o Poeta: Dat veniam corvis, vexat censura columbas[ii]; e ainda mal que tantos exemplos vemos, em que se cumpre ao pé da letra, o que disse o outro: Quidquid delirant Grai, plectuntur Achivi[iii]. E vem a ser o que nós chamamos Justiça de Guimarães. Não nego que há crimes, que se devem castigar com morte a fogo e ferro, quais são os de Læsæ Majestatis Divina, & humana[iv]. E em tais casos é bem, que mostrem os Reis com o último suplício o poder, que Deus lhe deu até sobre os Sacerdotes. E porque a praxe desta doutrina pareceu em algum tempo escandalosa, no que toca aos Sacerdotes, é bem que a declaremos: e quem a quiser entender bem, leia o Capítulo que se segue.
Padre António Vieira, Arte de Furtar, Oficina de Martinho Schagen, Amesterdão, 1744, pp. 303-304



[i] Motus primo primus- movimento espontâneo.
[ii] Dat veniam corvis, vexat censura columbas - A censura poupa os corvos e persegue as pombas (verso de Juvenal, Sátiras, II, 63)
[iii] Quidquid delirant Grai, plectuntur Achivi - "quando os gregos deliram, é o povo que paga". A expressão latina original é "Quidquid delirant reges, pectuntur Achivi" (Horácio, Epist., I, 2, 14), ou seja, "quando os reis deliram, é o povo que paga" ou, na expressão mais vernácula, "quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão".
[iv] Læsæ Majestatis Divina, & humana – lesa majestade divina e humana

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