Sobre a cultura em Guimarães

 Vista de Guimarães a partir do Castelo (início do século XX)
(clicar para ampliar)


Alguém que aterre repentinamente em Guimarães é capaz de demorar a perceber a dimensão cultural desta cidade, tendendo a subestimá-la. Nestes últimos dois anos, sobram-nos os exemplos dessa atitude. A pretexto da Capital Europeia da Cultura que aí vem, não faltou quem se atribuísse a si próprio a nobre missão de evangelização cultural deste território de bárbaros, encarregando-se de trazer as luzes da civilização aos brutos que viam em nós. E logo concluíram que, além de brutos, seríamos difíceis (“como é difícil trabalhar com esta gente”, iam murmurando por aí) e mal agradecidos, já que não nos ajoelhávamos perante a imensidão da sua sabedoria, nem elevávamos ao céu cânticos de congratulação e de reconhecimento pelo seu esforço inglório para nos ensinarem aquilo já sabíamos. Se há marca distintiva de Guimarães, é a que resulta da dimensão e da consistência da sua vida cultural. Que não vai começar amanhã, nem começou ontem. Esta é a terra de Martins Sarmento, de Alberto Sampaio, de João de Meira, de Raul Brandão, de Mário Cardoso, de Alberto Vieira Braga, de Santos Simões, de José de Guimarães. Não foi por acaso que Guimarães ganhou o direito ao título de Património Mundial, nem foi por obra dos novos evangelizadores que esta cidade adquiriu o privilégio de ser Capital Europeia da Cultura. Aquelas são distinções que alcançou por aquilo que tem sido desde o último quartel do século XIX: uma cidade que valoriza o seu património e que aposta na cultura.

O que vai aí acima vem a propósito da leitura do texto que Manuel Monteiro, escritor, político republicano e bracarense, escreveu como introdução ao primeiro número da revista Mínia (1944), de que foi director, em que traça um retrato sombrio da realidade cultural do Minho. Agradeço ao meu amigo César Machado a lembrança desta leitura, que agora partilho. Os sublinhados são da minha responsabilidade. 

[INTRODUÇÃO]

A província do Minho, com uma população tão densa como industriosa e activa e reflectindo as qualidades admiráveis do substracto da raça, dá o aspecto – salvo o sector vimaranense – de se conservar alheia, indiferente, senão refractária não só aos problemas que agitam o pensamento moderno, mas também àqueles que dizem respeito ao seu passado étnico, histórico, artístico, ou interessam ao seu futuro económico, científico, social.

Por outras palavras: dá a impressão de ter vivido num entorpecimento mental.

Dir-se-ia que a maioria dos habitantes deste éden se mantém aparentemente numa inocência de espírito como a dos nossos primeiros Pais no Paraíso genesíaco, acatando submissa uma prescrição divina de não tocar na árvore da ciência, na árvore da vida da inteligência.

Muitos destes, porém, saborearam os frutos proibidos, mas fugiram como se fossem expulsos e longe exerceram ou exercem a sua brilhante actividade intelectual que os honra, como a esta incomparável, região natal a qual nem por isso parece ter-se apercebido ou aperceber-se do seu nobre esforço no domínio das letras, das ciências ou das artes.

Com efeito e para não lembrar senão contemporâneos, nesta zona abençoada pela natureza e porfiadamente engalanada pelo homem desde o Ave ao Minho, quase é ignorada a obra beneditina de três dos maiores botanistas de Portugal, os minhotos Bernardino António Gomes, Júlio Henriques e Gonçalo Sampaio, como é quase desconhecida uma das mais notáveis criações de literatura nacional a Comédia do Campo de Teixeira de Queiroz, outro minhoto insigne, que nela definiu maravilhosamente o carácter da paisagem e a psicologia de uma série de tipos de província.

Por igual quase todos não sabem que da cidade primaz saiu o artista Lendo Braga, a goiva mais genial da terra portuguesa nos tempos modernos, e por igual… mas seria longa e desconsoladora a lista da ingrata ignorância da colectividade.

Como explicar neste adorável rincão tal desamor ou desinteresse pela obra de seus literatos, dos seus sábios, dos seus artistas, embora dispondo de um avultado número de centros urbanos de importância onde, pela força das circunstâncias, se congregam elites cultas?

Ao que parece pela falta dos indispensáveis organismos de cultura e seus correlativos instrumentos de acção[1].

Ora um punhado de homens de boa vontade tomaram, nesta capital provinciana, urbe de tradições veneráveis, a iniciativa de secundarem e ampliarem o exemplo vimaranense a fim de se debelar este estado apático de indiferença pelas coisas do espírito.

Fundaram, pois, com tão alto intuito o Instituto Minhoto de Estudos Regionais cujo órgão é a “MINIA” que hoje sai a público, abrindo os seus braços, quer dizer, as suas páginas a todas as suas facetas, da Terra e do Homem do Minho, mas também ao das inerentes e complexas questões sociais, estéticas e científicas.

É assaz temerário o empreendimento, sobre tudo, neste momento de ansiedade e pesadelo em que parece renovar-se o aniquilamento do caos primitivo; mas no meio das mais horríveis catástrofes não deixa de germinar no coração humano a flor da esperança.

Escudada nesta força e na que vem de consciência dum dever de cumprir, com abnegação e desinteresse, a “MÍNIA” seguirá intrepidamente o seu caminho, conjugando os esforços dos valores até agora isolados, criando estímulos, espalhando cultura pela exposição e debate de todos os assuntos e problemas que se prendam com o Minho no campo artístico, científico, económico, histórico, religioso e social não excluindo mesmo as abstracções puras da filosofia.

Por este aturado labor de investigação e análise de discussão e exegese, de inspiração e energia evocadora, a “MÍNIA” projectará luz sobre o passado, definirá o presente, arquivará materiais construtivos duma obra do futuro e contribuirá para transformar esta província, agora vegetando em grande parte numa absorvente materialidade, num agregado que vivia, superiormente e com brilho, pela inteligência.


Janeiro, 1944.
Manuel Monteiro


[1] No entanto com pena se lembram, entre outras, as nobres tentativas ingloriamente frustradas do saudoso João da Rocha, do Dr. Cláudio Bastos e de Júlio de Lemos em Viana do Castelo.

Comentar

2 Comentários

Nuno Leal disse…
Foi pena o caro amigo não ter ouvido a proverbial verborreia debitada pela programadora das artes e arquitectura. Notável, particularmente quando disse que os "locais" iriam até Serralves aprender a apresentar uma exposição fruto do protocolo estabelecido com o Museu de lá. Um mimo!
Faltei a esse encontro, a que teria todo o interesse em assistir, por sobreposição de um compromisso a que não podia falhar. Ficarei atento aos jornais.