Aspecto do troço da actual rua da Rainha, que antigamente se designava por rua dos Mercadores.
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Na história de uma cidade não faltam casos de trapaceiros ardilosos e de vendedores de banha da cobra que se aproveitam da boa fé e da credulidade das suas vítimas para fazerem vingar as imposturas que engendram, muitas vezes movidos por um instinto de sobrevivência bastante sinuoso. Valem-se, acima de tudo, do poder da palavra, que sabem usar com a cadência e a entoação adequadas, com tais manhas e artifícios que são capazes de dar realidade à mais mirabolante das invenções: empregam a mentira com tal mestria que, mesmo quando posta a descoberto, ainda haverá quem continue a garantir que as patranhas que inventaram são a mais pura das verdades.
Um exemplo disto aconteceu em Guimarães há 175 anos, no longínquo mês de Março de 1836. Conta o cónego Pereira Lopes, tal como foi reproduzido pelo incansável paleógrafo João Lopes de Faria, que na então rua dos Mercadores, correspondente hoje à parte da rua da Rainha que desemboca na Praça da Oliveira, vivia uma viúva, desgostosa pela ausência do seu finado marido, a quem apareceu um caseiro de uma das suas quintas, afirmando “que tinha em si metida a alma do defunto Francisco Areias, seu senhorio, e que queria vir a sua casa para mandar fazer algumas restituições”. Foi acolhido pela viúva e pelo seu filho que, convencidos pela lábia do caseiro, o hospedaram em casa, “tratando-o muito bem”. O caseiro que dizia trazer no corpo a alma do finado Areias, deu de começar a distribuir a sua herança, beneficiando quem bem entendeu, chegando a incluir na sua liberalidade a Santa Casa de Misericórdia desta vila.
O escrivão de justiça José de Sousa Bandeira, que ficou nos anais como jornalista de pena mordaz e certeira (foi o mentor do primeiro jornal de Guimarães, o Azemel Vimaranense), foi a casa da tal viúva em diligência, com o propósito de interrogar aquele que dizia que falava pela sua voz o extinto Francisco Areias. Bastaram umas quantas perguntas para Bandeira constatar que estava perante um refinado intrujão, levando-o a ferros para a cadeia da vila. Quem ficou inconsolável foi a viúva, “por lho tirarem de casa e o levarem preso, indicando ainda mais por este facto, que ela estava persuadida de que a alma do seu defunto marido estava dentro do corpo do caseiro”.
Pois é, pode não parecer, mas a mentira tem pernas curtas...
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